No seu clássico livro “A Anatomia da História”, John Truby defende que as estruturas mais comuns das histórias repetem estruturas da natureza. A história linear se parece com um tronco reto de uma árvore, a sinuosa se parece com uma cobra ou com um rio, a espiral em ciclones e caracóis, a ramificada em galhos e nos veios das folhas, e assim vai.
Na vida que convencionamos chamar de real, esses padrões se misturam e se entrelaçam todos os dias. Não dá pra dizer que a vida de alguém, por mais previsível que seja, segue um padrão linear. Até porque o mais entediante dos seres humanos é a criatura mais suscetível a ser capturada pelo absurdo dos acontecimentos.
Truby fala também do padrão explosivo, que é onde as histórias parecem acontecer simultaneamente. Esse padrão acontece em vulcões. Estamos falando daquelas histórias que se passam em multiversos, como Doutor Estranho ou quando temos múltiplas perspectivas de personagens em espaços diferentes, como Pulp Fiction. Através da montagem ou da separação de capítulos temos a sensação de simultaneidade. Mas a simultaneidade é falsa nas nossas vidas. Não podemos estar em dois lugares ao mesmo tempo, fazendo coisas diferentes. Personagens podem até falsear a sua presença com um duplo, um gêmeo, um clone ou mesmo um androide. Infelizmente eu não tenho nenhum desses.
E por que dessa longa explicação sobre a diferença de um modelo narrativo e personagens duplicados para a vida real?
Pois alguns meses atrás marquei na minha agenda o dia e o horário do prêmio ABRA - Associação Brasileira de Autores Roteiristas - numa quarta-feira. E todas as aulas da minha oficina na terça. Qual não foi minha surpresa ao perceber que o modelo linear narrativo da minha vida tinha explodido? Eu estava indicada a ao prêmio de melhor roteiro de comédia e musical por Rensga Hits! na terça, exatamente no mesmo horário da primeira aula da minha oficina.
Depois de decidir não ir ao prêmio e manter meu compromisso, as amigas Bia Crespo e Carolina Alckmin me convenceram que os inscritos entenderiam a confusão na agenda e topariam atrasar o início dos encontros. Ainda assim não achei justo e pedi para querida Ana Rüsche dividir comigo um encontro extra para compensar o imprevisto. E ela topou! Obrigada a todos pela compreensão a respeito de vulcões, narrativas simultâneas e confusões no google calendar. Se você for um inscrito na oficina, abra sua caixa de emails e leia as mudanças nas datas.
Curiosamente, Rensga Hits!, a série pela qual concorro ao prêmio, fala exatamente de processo artístico, honestidade, mercado criativo. O que une as duas partes desse texto.
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Depois dessa grande introdução, gostaria de falar sobre intuição.
Sempre tive uma curiosidade grande sobre essa mistura de sentimento e premonição, esse “algo” que é na fronteira do que existe e do que é imaginado. Quando intuímos algo não estamos vendo, não temos elementos concretos, mas aquilo se manifesta no nosso corpo (arrepio), no nosso pensamento (desconfiança) e na nossa emoção (ficar em estado de alerta, atenção). Se fosse um sentido, a intuição seria o olfato, e nós, animais farejando.
Apesar de entender que uma história pode ser bem contada através de um conjunto de técnicas e que essas técnicas podem ser melhoradas com a prática, sinto que muitas vezes a nossa ansiedade em fazer certo nos tira de um estado intuitivo que pode nos levar para caminhos inesperados.
“Conhece-te a ti mesmo” é um aforismo atribuído a Sócrates, mas Pausânias ( uma espécie de guia turístico da Grécia Antiga) encontrou a frase gravada em um templo de Apolo sem nenhuma autoria. Talvez a frase tenha sido um ditado popular da antiguidade como hoje dizemos “água mole em pedra dura etc e tal”. Todo ditado popular dá essa sensação de transmitir uma verdade, mas como tudo na vida nem sempre. Acho sinceramente que é impossível conhecer a si mesmo 100%. Tanto que a gente fica fazendo psicanálise, astrologia, hipnose e compartilhando memes com legendas “isso aí é muito eu!” e fatalmente chegamos nos mesmos lugares, conclusões, sem acessar realmente nada de novo.
Um dos poucos lugares onde as nossas partes ocultas se revelam é na escrita.
Depois de uma boa preparação - pesquisa, construção de personagem, uma premissa sólida e quem sabe, até uma boa frase de abertura na cabeça, é importante para um autor seguir sua intuição. Se deixar levar pelo texto, entrar no fluxo, ser conduzido por algo que não é exatamente da ordem do racional - mesmo que você saiba exatamente onde quer chegar. Não pensar tanto, e nem ser afogado pelos sentimentos externos ao texto (vai ser bom? vai fazer sucesso? vai comunicar? vou ganhar dinheiro? fulano vai ler?) e sim, simplesmente ir. Se deixar ir.
Para nós da grande comunidade de neuróticos e controladores isso pode ser um verdadeiro suplício. É mais valoroso dizer que batalhou cada letra, cada palavra, cada frase como se escrever fosse arrancar o osso de um cão faminto. Acredite em mim: pode se vangloriar, pois momentos terríveis acontecem no processo de escrita. Arrependimento, cansaço, branco, falta de fé em si e no texto, crises de baixa auto estima ou de megalomania, dúvidas sobre a relevância, originalidade, crises de ansiedade ou apatia, e por fim, procrastinação gerando ainda mais ansiedade e mais apatia. Então algo mágico acontece. Algo maior que “empurra”o texto pra frente e faz as palavras saírem com facilidade.
Para alguns o nome disso é prazo; a entrega final se aproxima e não há mais o que fazer. Bom ou ruim, o texto deve ser entregue. Mas em alguns casos é a bendita intuição te levando a lugares que você não imaginou, é o fluxo acontecendo, é o momento onde a maré leva o barco, onde a criança tira as mãos do guidão e deixa a bike correr pela ladeira, onde o calor levanta o balão. É, principalmente, o momento de não-saber. Pelo menos não-saber por oposição de como entendemos o saber: com a cabeça, com a lógica, com o racional. Se permitir ter acesso ao não-saber, esse lugar em que nos desconhecemos é fundamental.
E não se preocupe: esse momento acaba. Logo voltaremos tranquilos para aquilo que sabemos: estruturas, beats, tabelas, diagramas, post-its. Podemos voltar ao esforço e a certeza de que estamos “trabalhando” o texto.
Ao menos para mim é nessa permanente tensão entre o que sei e o que eu não sei que uma história acontece. E para você?
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O livro “Anatomia da História” de John Truby saiu recentemente pela primeira vez no Brasil pela editora Seiva.
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A Bia Crespo está dando aula de roteiro de longa-metragem e foi uma das roteiristas de Rensga Hits! A equipe da primeira temporada ainda contava com os incríveis Victor Rodrigues, Nathalia Cruz e Otavio Chamorro.
Carol Alckmin é uma amiga querida, produtora de sucessos como De volta aos quinze e Rensga Hits! e excelente cantora de karaoquê.
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Muitas amigas e amigos concorrem em diversas categorias hoje e fico feliz de contar que a banda de roteiro da Rosane Svartman em Vai na Fé - da qual orgulhosamente faço parte - concorre a melhor novela. Parabéns para essa equipe que eu amo: Pedro Alvarenga, Renata Sofia, Fabricio Santiago, Mario Viana, Sabrina Rosa e Paula Teixeira.
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Por fim, torçam por Rensga Hits! e assistam a primeira temporada no Globoplay. A segunda temporada estará disponível em agosto desse ano. Até mais.
Parabéns pela indicação e pelo blog! Gosto muito do "Anatomia da História, do John Truby. Me salvou durante um longa. Comecei a ler seu último "The Anatomy of Genres", bem interessante como ele analisa os gêneros. Vale a pena baixar a amostra no kindle para ver se bate. Abs
A intuição traz esse pânico mesmo. Estou animada que esse livro saiu em português para usar em aula. E pra premiações e karaokês, tamos aí sempre ❤️