Clarice Lispector demorou mais de cinco anos editando o seu clássico “Objeto Gritante” depois de botar o ponto final no manuscrito.
Não está familiarizado com o o nome do livro? É que a obra finalizada nunca teve esse título; chegou nas livrarias com o nome de “Água Viva”, o fluxo de pensamento, relato em primeira pessoa de uma pintora em pleno processo de criação se dirigindo a um amante, ou ex amante.
Clarice submeteu o original aos seus pares, recebeu opiniões diversas, inclusive a desencorajando de publicá-lo. Num esforço de coragem, reduziu o primeiro manuscrito quase à metade. “Objeto Gritante” nascia de um esforço de inovação e criatividade que não podia ser controlado, mas a obra-prima “Água Viva” só nasceu de um esforço ainda maior, de uma edição radical, que deixou o osso do texto exposto.
A forma, a estrutura, essa coisa que muitos escritores iniciantes sentem como uma abstração é aquilo que serve para que se possa navegar na ficção com sentido. O texto de “Água Viva” parece coloquial, um fluxo contínuo que vaga entre o cotidiano e o metafísico, pois a narradora é uma pintora experimentando a palavra como linguagem pela primeira vez, e aparentemente sob forte emoção. Um texto como esse só pode ser construído por alguém que domina a linguagem e assim pode também intuí-la e ser livre para usá-la.
Percebam.
A forma só faz sentido pois a narradora e protagonista foi construída para ser alguém que experimenta. E por isso o texto de Clarice pode experimentar também.
Margaret Atwood termina “O Conto da Aia” com um anexo chamado “Notas Históricas” que narra um encontro acadêmico onde especialistas debatem o período histórico onde os fatos da trama se desenrolam. Um dos principais materiais que esses acadêmicos usam para estudar a ditadura misógina de Gilead são áudios gravados por uma vítima do regime, que foi a protagonista da trama do livro que acabamos de ler. A Aia atravessa todas as violências do regime de Gilead para mulheres em idade fértil, é a sua voz que chega ao futuro - e até nós, leitores - para alertar onde podemos chegar caso os direitos das mulheres sejam deixados de lado. Mais um exemplo de como uma protagonista bem construída manda na trama, e escreve a história junto com a autora e com o autor.
É através desses olhos que vamos enxergar a história. Eu citei aqui livros com narração em primeira pessoa, mas mesmo em histórias escritas com o narrador onisciente em terceira pessoa (vamos falar disso em breve!) é o protagonista que experimenta o universo que vamos criar.
Por isso um autor ou autora deve saber quem seus protagonistas são.
E como construir bons personagens?
Existem muitos métodos, em tópicos, em listas, em bolinhas, em gráficos. Acho que você pode escolher a maneira gráfica como organizar as informações. Quando eu era adolescente, eu amava fazer as fichas dos meus personagens de RPG em “Vampiro, A Máscara” mais do que jogar.
(E para quem estiver se perguntando, eu era uma Tremere cruel e que não tinha pena de beber o sangue de outros vampiros. No jogo, isso era o pior dos crimes que um vampiro poderia cometer. Uma blasfêmia chamada diablerie).
As fichas eram bem completas, perguntavam os poderes, fraquezas, aparência física, relações. Mas muitas dessas características eram decididas aleatoriamente pelo jogo de dados. Quando você escreve ficção tem o privilégio de dosar tudo isso de maneira livre. Sua personagem, suas regras.
Para mim, os personagens chegam antes da trama em si, e trazem junto com eles um problema a ser resolvido. Então, quando a personagem se apresenta para mim, eu faço perguntas para ela. Perguntas, que poderiam estar numa ficha de RPG, ou quando você conhece alguém muito interessante numa mesa de bar. Afinal quem é você?
Qual a idade?
Qual o gênero, identidade sexual, orientação?
Qual a raça?
Qual a classe sócio econômica?
Tem filhos?
Tem pais vivos?
Trabalha com que?
Tem alguma religião?
Como é a aparência física?
Tem alguma deficiência?
Tem alguma habilidade?
Um segredo?
Qual sua vulnerabilidade/fragilidade?
Qual o seu caráter?
Tem ódios / fobias?
Faz parte de algum tipo de organização?
Não se preocupe se para você um fio de história vier antes das personagens. Para muitas autoras e autores uma situação chega primeiro. Um incômodo, um dilema. Uma necessidade de comentar a sociedade. Como bom procrastinador, Deus usou o sábado para trabalhar e criou os personagens por último, já no dead line. Mas garanto que quem criou o personagem Deus, o criou antes da trama.
Bom, também gosto de pensar nas emoções prevalentes, e ir testando situações e como esse personagem reagiria. A um pedido de casamento, um assalto, a revelação de que não é filho de quem pensava ser.
Perceba que quando você faz isso você já localiza a sua personagem no tempo, no espaço e quase, quase, quase vai ter o gênero da sua história (se todos os seus personagens centrais são influencers que tem 16 anos numa escola de elite em São Paulo a sua história pode até ser para um público adulto, mas provavelmente não).
Outra coisa legal é perceber se seus personagens se alinham em algum arquétipo ou tradição. Recentemente comecei a estudar os mitos de Apolo e sua irmã Ártemis e fiquei impressionada como muitas tramas modernas de duplas de psicopatas se assemelham com a relação dos dois. Em muitos mitos Ártemis é a flecha da morte que atinge as mulheres que contrariam seu irmão mais novo e protegido. Ui.
No recente filme “Furiosa - uma saga Mad Max” a personagem título está colhendo uma maçã quando é literalmente tirada do paraíso por uma gangue de motoqueiros, com ecos no sequestro de Perséfone por Hades, ou mesmo a queda do paraíso na mitologia católica.
Nunca subestime o poder dos mitos. E olha que sorte, esse repositório de imagens, personagens e histórias está dentro da gente. Da observação do mundo, das nossas relações de amizade, familiares e de trabalho e tudo aquilo que nos chama atenção: no nosso cotidiano, nas notícias e nas histórias que amamos.
Dê para sua personagem algo para chorar, algo para sorrir, algo para lutar. E metade do trabalho estará feito.
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Para os inscritos na oficina de escrita criativa Fazendo Drama, faremos exercícios de construção de personagem no nosso segundo encontro. Não vejo a hora da gente começar.
Até breve!
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P.S
Vou deixar aqui alguns trechos que grifei na minha última leitura de "Água Viva"
“Escrevo por acrobáticas e aéreas piruetas – escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio”.
“E doidamente me apodero dos desvãos de mim, meus desvarios me sufocam de tanta beleza. Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca. E tudo isso ganhei ao deixar de te amar”.
“Quem me acompanha que me acompanhe: a caminhada é longa, é sofrida mas é vivida”.
“O que salva então é escrever distraidamente. Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada”.
“Não gosto do que acabo de escrever – mas sou obrigada a aceitar o trecho todo porque ele me aconteceu. E respeito muito o que eu me aconteço. Minha essência é inconsciente de si própria e é por isso que cegamente me obedeço”.
“Nasci dura, heroica, solitária e em pé”.
Todos os trechos citados são de Clarice, exceto o próximo, em carta de Maria Bonomi, pintora e amiga de Clarice, que respondia à leitura do manuscrito de “Objeto Gritante":
“Ou assumimos nossa própria carga de criatividade e convivemos com ela ou estamos condenados a cair na mediocridade”
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Você é tão sábia. Me deu até vontade de escrever ☺️
Que deleite de texto, Rê! Como sempre! <3