Fazer arte e cultura nunca foi atividade democrática. Se você fosse rico, herdeiro ou caísse no gosto das elites é atividade celebrada e bem remunerada. Caso você venha da classe trabalhadora, ou de grupos geográficos ou políticos marginais seu trabalho não é arte - é artesanato, é exceção, é curioso. E obviamente não remunerado ou muito mal remunerado.
Algumas reflexões sobre quem é artista e quem não é estão no episódio “Caminhos Cruzados” do podcast Radio Novelo Apresenta, que você pode escutar clicando aqui.
Nele somos apresentados a trajetória da artista plástica e pintora Madalena Santos Reinbolt, uma mulher negra, também cozinheira e doméstica, que trabalhou para o casal Elizabeth Bishop e Lota Macedo Soares. Bishop uma poeta incontornável da literatura mundial. Macedo Soares uma arquiteta festejada, responsável entre outras coisas, pelo projeto do Aterro do Flamengo - uma joia do urbanismo carioca. .
Três artistas mulheres convivendo na mesma casa, separadas por tensões raciais e sociais inescapáveis. A principal delas, pela incapacidade do casal Lota / Bishop de entender Madalena como artista. Reproduzo aqui um trecho de uma carta de Bishop falando do trabalho de Madalena:
“Ela revelou-se uma pintora primitiva maravilhosa, de modo que daqui a mais algum tempo vamos estar vendendo os quadros dela na 57th Street e vamos todas ficar ricas”.
Bishop referia-se à artista em suas cartas apenas como “A cozinheira” e mesmo que em alguns momentos seu espanto com o talento de Madalena fosse genuíno - a poeta chega a dizer que acha Madalena melhor que Portinari - esse talento também é percebido como inconveniente, um transtorno para a rotina familiar. Afinal, Madalena era a cozinheira.
Apesar de toda história se dar nos anos 50, hoje ainda não temos uma realidade muito diferente. Fazer arte não é visto como trabalho, no sentido de ofício. Não é algo que valha ser remunerado, reconhecido como labor, principalmente se o artista não for oriundo de uma elite intelectual geralmente colonialista, deslumbrada, cafona e auto celebratória.
O que nos separa daquele tempo dos dias de hoje é um agravamento na crise política e econômica onde, além da ideia de que o artista é um vagabundo e que sua atividade não é trabalho, é a ideia de que o resultado do fazer artístico tem pouco ou nenhum valor. Em uma crise sem precedentes para que serve uma música, um livro, um quadro, um filme ou uma peça de teatro?
Os grandes capitalistas sabem a resposta: para dar lucro para os detentores dos meios de difusão e produção, e para isso os produtores dessa arte devem ser precarizados, mal remunerados, humilhados e viver em permanente insegurança.
Falando do meio que me cabe, uma coisa curiosa sobre o ofício da escrita é que toda pessoa no planeta que foi alfabetizada tem a certeza pura e cristalina que pode escrever. Os únicos que se sentem em dúvida sobre a própria habilidade e desamparados escrevendo são os próprios escritores.
Nada mais natural - o ato de criar não é um ato de certeza. Ele é mais parecido com trilhar e se perder num caminho novo, mesmo que já tenha sido trilhado por outros ou por você mesmo anteriormente. Logo, quem nunca escreveu, sabe claramente o que fazer para ter um texto de sucesso ou que diga exatamente aquilo que deve ser dito. São os executivos, os burocratas, os políticos, os oligarcas, os CEOs, os financiadores. E claro que é a última categoria e não os autores a definir o valor do próprio trabalho e o tempo que ele deve ser executado.
Acima, trecho muito divertido e atual de “A Condessa Descalça", onde Humprey Bogart interpreta um diretor e roteirista revoltado com a indústria cinematográfica hollywoodiana.
O agravante é que muitas vezes os próprios escritores não se vêem como trabalhadores. É comum dizer que escreveriam por amor, que sentariam em suas cadeiras e executariam parágrafos e parágrafos durante horas extenuantes de exigência física e mental e tudo isso de graça. É comum no audiovisual produtoras exigirem projetos completos - as chamadas Bíblias - sem pagar um centavo, apenas com a promessa de, quem sabe um dia, vai vender o seu material. É comum que autores recebam propostas semelhantes para a venda dos direitos de seus livros que grandes redes de tv e streaming desejam adaptar.
O capitalismo gosta de histórias, só não gosta que existam pessoas escrevendo.
Prova disso são as tentativas violentas das empresas multinacionais de streaming para barrar a regulação do VOD no Brasil. Precarizar o trabalho dos criadores não é apenas um sadismo inócuo - é a base do negócio que continua sendo pouco bem pouco transparente em matéria de dados.
A recente revolução da Inteligência Artificial turbinou essa fantasia tecnocrata de arte sem artistas. A excitação do mercado, do Vale do Silício e dos tech guys parece sangue na água. A substituição do homem pela máquina não é fantasia nova, mas agora o brinquedo ficou mais interessante pois há uma expectativa que finalmente o trabalho intelectual, subjetivo, lento, observacional prescinda da experiência humana.
A alienação do trabalhador do seu próprio trabalho é uma coisa terrível. Quem de nós já não se sentiu impotente, desamparado, sem saber se essa habilidade poderia realmente sustentar uma vida digna? Quem de nós não sentiu nos ossos o medo da demissão, de não pagar o aluguel, de não pagar a escola dos filhos, de ter que voltar para sua cidade de origem, voltar para a casa dos pais ou se submeter a trabalhos ainda mais desgastantes e precarizados? Assim como Madalena muito de nós trabalhamos em outras coisas para sustentar a produção criativa.
E qualquer pessoa que questione o estado das coisas, fale dessa falta de transparência, exija direitos, pense em usos éticos da Inteligência Artificial é chamado de ludista, atrasado, medroso. Afinal o progresso é esse trem imparável nos levando para frente, sem obstáculos, para um destino ignorado, mas certamente brilhante.
O problema é quem esse trem deixa para trás.
Observar o mundo, dialogar com ele, representá-lo, desafiá-lo é tarefa fundamental para a democracia. É a barreira fina que nos separa do horror. Não à toa governos totalitários sempre sabem contra quem devem incitar o ódio: estudantes, intelectuais, e claro, artistas. Muitos ditadores também escolhem o tipo de arte aceitável para que executem seu projeto estético fascista. Foi assim com Hitler, com Mussolini e agora com o autocrata Donald Trump, que interviu para museus norte americanos só exibissem obras de exaltação dos Estados Unidos.
Se somos tão inúteis e nosso trabalho é tão supérfluo, para que tentar eliminar nossos meios de sustento e produção? E para que usar nossa técnica em delírios de auto exaltação?
O atual estado das coisas nos levará a um estreitamento de perspectiva e visões de mundo. Se fazer arte e cultura não for mais sustento, trabalho, voltará a ser privilégio de poucos sortudos nascidos em berço de ouro que podem prescindir de ganhar o próprio dinheiro. E com isso não digo que pessoas ricas não possam ser artistas talentosos, inclusive sempre poderão ser - pelos acessos à educação formal, cultura, por ter tempo, por não estarem sob a pressão da sobrevivência. Estou dizendo apenas que, como sociedade, não podemos renunciar à tensão das múltiplas perspectivas de representação do mundo ou ficaremos mais burros e vulneráveis.
É hora de reivindicar para nós o direito de ter uma vida digna, plena e com direitos fundamentais. Consciência de classe não é um conceito mofado, nem palavra de ordem em desuso. Agora, mais do que nunca, é uma ferramenta poderosa para defender a nossa própria existência.
::
Links relacionados que podem aprofundar a discussão :)
O esgotamento da fantasia tecnológica da IA, no New York Times.
“Nobody knows anything” - com essa frase curta o roteirista William Goldman mostrou porque era o enfant terrible de Hollywood defendendo um legado autoral e humano para suas obras. Na Variety, em inglês.
O livro “Não aguento mais não aguentar mais” sobre como os Millenials se tornaram a geração do burnout em consequência da dissolução das instituições e do fim dos direitos humanos e trabalhistas. Gosto muito do prefácio que escrevi.
Juca Ferreira, ex ministro da Cultura defende a legalização do VOD como pauta urgente da indústria audiovisual.
Minha experiência pessoal com Burnout em uma matéria da Marie Claire.
Os impactos na saúde física e mental da escalata 6x1.
O Instagram ativista da Paula Villar
::
Fazendo Drama é uma newsletter gratuita, sem periodicidade onde eu escrevo o que eu quero na hora que quero quando quero - pode ser escrita criativa, ensaio, ficção.
Enviem para os seus amigos e me contem o que acharam por aqui ou pelo Instagram.
::
Até breve (ou não)
Renata C.
dizem amar a arte, mas odeiam os artistas. vai entender...
ninguém imagina o trabalho que dá colocar ideias no papel