Um escritor de grande prestígio, premiado e com diversos livros publicados está na frente de sua editora no bairro de Botafogo no Rio de Janeiro. Cercado de alguns amigos e admiradores toma um pingado antes de subir ao quarto andar para conversar sobre seu próximo projeto.
O clima é leve, a conversa e as risadas estão altas. O escritor então faz uma piada homofóbica. O que ele não sabia é que no mesmo bar rente da rua estava um outro escritor, colega seu, um homem gay.
A confusão se instala, e o escritor gay dá umas porradas no seu famoso colega, que descabelado e humilhado se refugia na editora.
Poderia ter acontecido em 2024, mas o caso se deu em 1960. Lúcio Cardoso deu uns tabefes em José Lins do Rêgo na frente da Editora José Olympio. O causo foi relatado em uma coluna social do Jornal do Brasil e eu soube dessa fofoca literária pelo prefácio de Chico Felliti para a edição de Crônica da Casa Assassinada - clássico da literatura brasileira escrito por Lúcio.
Contei esse causo na oficina Fazendo Drama. O quarto encontro da turma se chama “Você é o que você escreve” e abordou as muitas maneiras que um escritor se confunde com sua própria obra. “É impossível parir um filho que não é seu” eu disse para quem estava lá ontem à noite. Lúcio Cardoso se declarava abertamente homossexual desde a década de 40 do século XX e criou dois personagens icônicos que poderíamos hoje chamar de queer: Maria Sinhá, uma latifundiária escravocrata que se vestia com roupas masculinas e cavalgava melhor que qualquer peão de sua fazenda e Timóteo, o filho mais jovem de uma família tradicional do interior de Minas Gerais que se enclausurou em um quarto e apenas se vestia com as roupas de festa da falecida mãe.
Reagir a uma ofensa homofóbica de forma pública, não esconder a própria identidade, escrever sobre sua comunidade. Lúcio era quem (se) escrevia. Sessenta e quatro anos se passaram desde a confusão na frente do prédio da José Olympio e ainda hoje muitas pessoas não se sentem seguras para viver abertamente a própria verdade ou tem a coragem de escrever o que realmente ferve o sangue, pinica o cérebro, aperta as tripas. Lúcio estava à frente do seu tempo, na vida e na literatura, simplesmente por bancar ser quem era. Parece fácil. Mas era difícil em 1960 e continua sendo difícil hoje.
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Observei com atenção e curiosidade nas redes sociais a movimentação de atores falando sobre questões de escalação e precarização do trabalho em tempos de internet. Recomendo o vídeo de Armando Babaioff no programa Sem Censura, o post de Alice Wegmann no Instagram e o texto da preparadora de elenco Maria Beta também no Instagram.
Ao meu ver o mercado de atuação sempre teve fascínio por figuras célebres - apresentadoras, capas da playboy, ex- bbbs e agora influenciadores que ocupam esse espaço do que é popular, atrai público, vende, gera mídia. E isso não é um problema per se - muita gente boa chegou na atuação por essas vias. O agravamento agora, ao meu ver, é uma ideia de que o que é popular, célebre e atrai mídia são sempre produtos muito parecidos entre si, com um discurso muito parecido, com uma maneira de estar no mundo muito parecida - a mesma cara, as mesmas opiniões, as mesmas marcas. A individualidade, o único, o genuíno está sendo apagado pelo algoritmo. E quem se atreve a ser outro, a ter a abertura, se arriscar, acaba ficando para escanteio. Poucos são Lúcio.
Em contrapartida a tv aberta e os streamings nunca tiveram tanta diversidade nos seus elencos. Novos rostos, com novas cores, novas perspectivas, corpos não-padrão, vindos das diversas regiões do País estão sendo escalados, vistos, admirados, conhecidos.
O desafio para mim é que as exigências do mercado não formatem esses artistas genuínos até a homogeneização completa. Tem que ter muita força. Tem que ser muito Lúcio para resistir.
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Não posso deixar de falar da angústia que senti ao ler a denúncia de Andrea Robin Skinner, filha da ganhadora do Nobel de literatura Alice Munro. Andrea relatou em um texto no jornal Toronto Star que foi abusada sexualmente na infância pelo padrasto, Gerald Fremlin, segundo marido de Alice, e que a mãe optou por continuar casada com esse homem.
Alice Munro era amada na literatura, uma figura praticamente unânime. Não consigo deixar de imaginar o que é ser preterida por uma mãe. Não consigo deixar de imaginar o que é ser preterida por uma mãe genial e incontestável. Deve ser uma das maiores dores que uma mulher pode sentir.
Assim que pode, Andrea saiu de casa. Na literatura de Alice existem muitas filhas que abandonam as mães, mães que não exercem a maternidade pois suas filhas simplesmente desaparecem no meio da narrativa. É um decalque assustador da realidade, do que vaza pelos nossos dedos quando escrevemos, daquilo que nunca pode ser dito e acaba sendo revelado, por bem ou por mal.
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No dia 30 de julho às 19h eu e a Ana Rüsche vamos dar aulão de escrita criativa no zoom. Gratuito para os participantes da oficina Fazendo Drama. Para os demais, publicarei mais informações em breve.
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Renata, vai ter Fazendo Drama 2? Sim!
Nas terças-feiras de Agosto. Se Você fez sua pré inscrição, aguarde o email. Se não, vou publicar as infos nos meus stories ainda essa semana. Fiquem de olho, apertem sininhos e etc.
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Comentem, postem, façam notas, republiquem. Fazendo Drama é uma newsletter para quem tem opinião. Vejo vocês na próxima edição!
Animadíssima com nossa aula conjunta!
E que baque esse da filha da Alice Munro. Vou ler e pensar
a vida sempre transborda para a arte…