Numa transversal da Estrada do Portela, a rua se esticava, com sobradinhos dos dois lados, portões gradeados, calçadas estreitas, bem parecida com muitas ruas do subúrbio carioca. Diferente, apenas três coisas: como num sonho, o asfalto se interrompia e de forma perpendicular com a vegetação formando um paredão verde que a gente chamava de horta; do lado direito da rua, não havia uma casa, e sim uma vila; e dentro dessa vila, morava a minha avó materna, Zilda.
Não que uma avó seja uma exceção, ainda mais a minha. Cabelos brancos, curtos, rugas, dona de casa. Depois de criar seis filhas - e não dá para colocar em palavras o que é isso num texto tão curto - , ela agora cuidava de mim para minha mãe trabalhar. Durante cinco anos, a casa da minha avó foi também a minha casa. Esse período se uniu ao resto da minha infância, onde a rua, a vila, a casa e ela eram o meu lugar. De lá, resgato alguns fragmentos, como a arquitetura estranha, onde o quintal ficava no meio da planta, um coração verde, de chão cimentado. Roubar o macarrão recém escorrido na peneira. Tomar banho em uma bacia de alumínio. Ser amada de uma maneira que botou minha coluna de pé.
À noite, quando era hora das crianças dormirem, eu pedia carinho, mas que ela o fizesse com a ponta dos dedos. Levantava o braço e pedia "aqui”. Levantava a blusa mostrando a barriga estufada de criança com o umbigo protuberante e ordenava “aqui!”, virava de costas e a operação se repetia, até que ela dizia “chega, chega!” e mandava eu dormir. E eu obedecia. Dizem minha mãe e minhas tias que minha avó quando era só mãe delas não era muito afeita a carinho, abraço, beijo. Que amor assim, sem utilidade, era luxo dos netos. Nunca achei estranho, me achava muito merecedora das histórias, da atenção, do aconchego. Era nosso. Só mais velha fui entender que uma empregada doméstica obrigada a cuidar dos filhos dos outros a vida toda, uma esposa de um caminhoneiro gentil, mas que mal parava em casa e que nem sonhava com a mais remota possibilidade de “divisão de tarefas” talvez nem sequer tivesse tempo para algo sem função prática. Afeto é cozinhar, alimentar, limpar, costurar, bater e botar na escola. Com uma criança só, com um marido aposentado e filhas adultas entrando e saindo pela porta, isso sim devia ser quase descanso. E para algumas mulheres, descanso é outra palavra para bem-querer.
Durante minha adolescência e a transição para a vida adulta eu não senti a minha avó envelhecer. Só quando engravidei que a linha do tempo se tornou concreta. Quando eu estava com quatro meses, o marido dela, meu avô, faleceu. Eu podia fazer uma pausa para contar a esplendorosa história de amor dos dois, mas eu e ela já fizemos isso nesse podcast, e se eu fosse você, ouviria. Minha avó foi interpretada pela atriz Suely Franco, de quem ela era fã. Mas a pausa não farei. Apenas direi que a fantasia de eternidade de quem eu amava acabou.
Todo mundo já ouviu alguma história onde um casal muito ligado e muito unido morreu com pouco tempo de diferença. Meses, semanas ou mesmo dias separavam um e outro do fim. É um fenômeno bem documentado, a síndrome do coração partido. Claro que a gente na família, ficou um tempo em suspensão. Logo ficou claro que além da paixão pelo meu avô, intacta durante décadas, dona Zilda gostava bastante da vida por ela mesma.
Hoje a horta urbana que fazia divisão com a rua da minha avó e se estendia até Cascadura é o Parque de Madureira. A Vila não existe mais. Minha avó morou em Iguaba, Vila Valqueire, Brasília, Tijuca e Niterói, sempre migrando de acordo com a disponibilidade de cuidados das filhas. Todas, de um jeito ou de outro aprenderam a grandeza do gesto de cuidado que sempre foi a linguagem que minha avó soube comunicar. Já que nunca pode ler ou escrever era assim que as histórias iam sendo contadas. Era esse seu livro.
Quando a demência começou a se instalar na minha avó, ela continuou sendo uma boa contadora de histórias. Agora ainda mais fantasiosas, com lances de realismo mágico mais pronunciados, misturando sonho, invenção, multiversos, saltos temporais, folclore brasileiro, mitologia própria e catolicismo. Curiosamente, apesar da sofisticação temática, estruturalmente as histórias ficaram mais curtas, indo direto no âmago da emoção.
Recentemente, a minha mãe me ligou para contar que a minha avó ao rezar o terço tinha abandonado os Pais Nossos e as Ave Marias para cantar “Temporal de Amor”, hit sertanejo dos anos 90 da dupla Leandro e Leonardo. Cada verso uma conta. Depois da oração, a alma da minha avó ficava cheia do Espírito Santo e ela podia chupar uma laranja, assistir novela ou uma missa na Tv Aparecida.
Fiquei muito tentada em interpretar a escolha da canção, o que representava para ela, se tinha a ver com o meu avô, se era uma manifestação desse erotismo difuso que geralmente emerge quando declínio cognitivo começa. Às vezes eu ria, lembrando dela, rosário nas mãos, e a música recitada com devoção. Também me pegava impressionada com os lugares que a nossa cabeça pode nos levar, as realidades que podemos construir. Na maioria das vezes não pensava em nada disso, engolida pela vida cotidiana, trabalho, relações, pressa. Só que algumas semanas atrás, como é o natural das pessoas na casa dos 90 e tantos anos, o corpo da minha avó deu sinais de cansaço.
Quem tem pessoas velhas na família sabe que doenças que são apenas chateações para pessoas jovens podem ser uma cascata de complicações para quem já viveu mais. Gripe, infecção urinária, febre são motivos de adiar um ou dois dias de compromissos para quem tem 30 ou 40 anos. Para ela, foi motivo de uma internação que dura semanas, com prognósticos variados de melhora e piora. A urgência dos dias agora era a urgência de vê-la, tocá-la, ouví-la. Na primeira visita, ela estava inconsciente, com tubos e monitores. Acho que meu pior medo é perder esse nível de autonomia. Ela odeia hospital, e eu, mais ainda. Ficar na fila de visitação da UTI, lavar as mãos, secar, junto com outros parentes ansiosos, atravessar o corredor com a sala de vidro cheia de médicos e enfermeiras ocupados e ver a pessoa que carregou uma família inteira imóvel, numa cama.
Tive uma angústia muito grande de pensar que naquele estado de doença e velhice o seu corpo não é mais objeto de nenhum toque que não seja funcional, objetivo. Passei por trás das máquinas, me abaixei para vencer um tubo mal posicionado e poder ter acesso ao corpo dela. Por causa das cobertas pesadas para evitar hipotermia eu não podia ver as costas, nem a barriginha, e os braços estavam enfaixados para manter os acessos no lugar. Mas tinha a cabeça para um cafuné, e assim ficamos em silêncio, ouvindo o apito das máquinas.
Hoje, na segunda visita, pude levar a minha filha. Isso significa que minha avó está lúcida, dentro do possível. O quarto bem iluminado, menos tubos, menos barreiras para a comunicação. Ela conseguiu sorrir quando nos viu, respondeu com dificuldade algumas perguntas simples. Que queria beijos, abraços. Minha mãe, a acompanhante do dia, pode descer para tomar um café. Na tv, Roberta Miranda numa jaqueta rock'n'roll cantava no palco do Luciano Huck, a única coisa que prendeu sua atenção além de nós. A melancolia aparecia quando ela mostrava, indignada, os braços imobilizados pois ela já tinha tentado tirar os tubos e resistir à manipulação do seu corpo tantas vezes que a equipe médica se viu sem alternativa. Para essa revolta eu não tinha resposta, estava tão impotente quanto ela. Então segurei sua mão enfaixada e comecei a cantar.
Chuva no telhado
Vento no portão
E eu aqui nesta solidão
Fecho a janela
'Tá frio o nosso quarto
E eu aqui, sem o teu abraço
Doido pra sentir seu cheiro
Doido pra sentir seu gosto
Louco pra beijar seu beijo
Matar a saudade
E esse meu desejo
Vê se não demora muito
Coração 'tá reclamando
Traga logo o teu carinho
'To aqui sozinho
'To te esperando
Quando você chegar
Tira essa roupa molhada
Quero ser a toalha
E o seu cobertor
Quando você chegar
Manda a saudade sair
Vai trovejar, vai cair
Um temporal de amor
Ela quase dormiu. Eu podia terminar esse texto aqui, dizendo que ela efetivamente dormiu, mas a vida é mais caótica que os encerramentos rendondos, perfeitos. Minha mãe voltou do café, minha filha percebeu um vazamento no soro, a enfermeira veio trocar. Depois de muitos beijos e uma despedida prolongada onde ninguém queria se separar, eu e minha filha entramos no elevador do hospital. Eu com a cabeça completamente vazia, como acontece comigo quando sou confrontada com emoções em excesso e intensidade. Uma espécie de paralisia, que só vai se organizar depois de um tempo de latência ou de escrita - como acho que é o que está acontecendo agora. Sem tirar os fones, minha filha agarrou minha mão, e ficamos assim até o elevador chegar ao seu destino.
Renata, acho que a primeira coisa que me deu vontade de te dizer foi: receba aqui o meu abraço. O hospital, a contenção, a fragilidade tão explícita diante de nós, tudo isso deixa a cabeça da gente sabe-se lá de que jeito. Daqui eu mando as boas vibrações pra sua avó. E pra vocês também. Boa semana!
Que lindo. Um fragmento de vida cristalizado ♥️