Uma pessoa desconfiada
Será que tudo que é para o seu bem te faz bem? Uma reflexão sobre a cultura do wellness e seus impactos nas mulheres.
Uma mulher sabe quando está mexendo num vespeiro. São tantas as restrições e limites impostos para nós desde que somos crianças que nos acostumamos a ler os ambientes, micro expressões faciais, antecipar cenários. A isso chamam de intuição, apesar de eu não descartar o mistério dessa habilidade.
Levantar a sobrancelha, falar sem palavras com uma amiga através do olhar ou aquela voz interna que diz “não entra nessa rua” são experiências comuns a muitas de nós.
Esse caráter desconfiado não tem um valor neutro. É um dom de duplo corte. Certamente a maioria das mulheres pode lembrar de um dia que foi milagrosamente salva por essa voz. Mas nunca consigo deixar de pensar quantas experiências eu deixei de ter, quantos territórios eu deixei de explorar, de quantos arrebatamentos eu desviei pelo simples fato de ser uma mulher e pensar em primeiro lugar na minha auto preservação e integridade física e na das pessoas que eu amo e que eu devo zelar.
Desde muito pequena sempre quis ser mais ousada do que sou, mais corajosa, passar mais dos limites. Nos meus sonhos infantis nada era pouquinho. Se eu sonhava em casar e ter filhos, era uma festa de arromba com vestido de princesa e eu seria mãe de seis - apesar do marido pouco aparecer no cenário. Se eu sonhava em ser espiã, eu matava, arrebentava, decapitava e tinha muitos amantes - sem nem saber o que era isso. Essa dificuldade com o morno, com o pouquinho, sempre me acompanhou. O meio termo era perder pra todo lado. Só que logo aparecem os pesos e contrapesos da vida adulta e existe aquele ponto de inflexão onde você começa a ver alguns dos seus amigos mais interessantes ficando parados no tempo de uma maneira desinteressante, entrando em combustão espontânea ou simplesmente morrendo agarrados na coerência interna de suas personalidades intensas. Nem melhor nem pior, existem aqueles que na outra ponta se acomodam em uma vida convencional que nunca foi desejada só porque foi assim que as coisas aconteceram.
Como dito anteriormente, nunca quis nada pouquinho, quero viver muito, frequentemente me imagino com cem anos, meus netos, familiares e amigos ao redor. Eles me achando gagá, e eu fazendo palavras cruzadas e ouvindo suas histórias e dando conselhos completamente malucos e não solicitados que depois da minha morte irão ganhar o caráter de revelação mística. Então para cumprir esse plano, em certo ponto da minha vida, eu decidi cuidar da saúde. Beber menos, não virar tantas noites, ser mais responsável com o uso de preservativos, não entrar em kombis só com homens para voltar para casa, não sair sem nenhum dinheiro. Existem muitos contos de precaução sobre o que acontece com moças descuidadas.
A sensação de que eu precisava me cuidar, com todos os tamanhos que o verbo cuidado tem, se intensificou depois que minha filha nasceu. Percebi que nunca mais atravessei a rua sem olhar para os dois lados, mesmo que a tal rua fosse só uma estradinha de terra num condomínio fechado no cu no mundo. Olhei para um lado: canavial. Olhei para o outro: aquilo ali é um calango? Pois nem o calango se sobressaltou.
Passei a ter uma nécessaire enorme com meus suplementos vitamínicos onde quer que eu fosse: vitamina D, colágeno, zinco, pentravan, creatina, probióticos, metamucil. Em cada pump, pozinho ou comprimido uma esperança e uma angustiazinha. Esperança de viver bem por muito tempo (e me manter bonita, porque não?) e a angustiazinha de “será que é preciso tudo isso, será que não tô me enganado?”, eu, Renata, a que não leva guarda-chuva pois é impossível vencer a natureza agora estou aqui querendo parar o tempo engolindo cápsulas manipuladas em farmácias com nomes hippies.
A passagem de tempo e suas consequências sempre angustiaram a humanidade, inspirando a ciência e atiçando os charlatões. E o impacto para mulheres, claro, sempre foi mais dramático: envelhecer é ser ainda menos ouvida, ser jogada para escanteio no jogo erótico e romântico, como se depois de muitos anos acumulados fosse preciso se recolher e parar de existir publicamente como pessoas relevantes. Eu entendo o pânico de parecer velha. O que me intriga é que esse medo tem aparecido cada vez mais cedo, nos impedindo de viver o tempo presente.
A popularização (ou imposição) do discurso de bem estar, que propõe rotinas cada vez mais assépticas, militarizadas e sem alegria com a promessa de viver mais e melhor nos coloca em um lugar de permanente dívida.
Aí está o vespeiro: viver bem e de forma saudável ainda é um privilégio de poucos. Fazer exercícios, comer de forma variada, ter horas de sono que promovam descanso, ter direito ao lazer e tempo com amigos e familiares, ter acesso a água potável, saneamento básico, conforto térmico - mas não é disso exatamente que estou falando.
Estou falando de pessoas que tem acesso a tudo isso e ainda assim optam por levar a marmita de batata doce numa festa porque fritura faz mal, a parar de beber álcool socialmente porque segundo as últimas pesquisas não existe nível seguro para o consumo dessa substância, parar de virar uma noite ou outra pois uma noite perdida de sono não volta mais. Boas más notícias: nunca existiram níveis seguros. Tudo já está perdido e não voltará mais.
Somos livres e donos das nossas escolhas, e estamos escolhendo acordar junto com o 5 A.M club pro dia render mais e sermos mais produtivos e para esse nosso lindo corpo deslibidinado (essa palavra existe?) e super saudável possa estar na terra por mais tempo. Desconfio. Desconfio quando começo a pensar a quem esse corpo autônomo e infalível serve, esse corpo que promete uma utopia/distopia de autossuficiência que prescinde inclusive do contato com outros corpos.
Desconfio quando a maior parte das minhas redes sociais fala do bem estar e da longevidade como uma tarefa individual, de puro mérito dos esforçados. Desconfio quando acordar cedinho sem ressaca é apenas a promessa da construção de uma fortuna que não virá. Desconfio, principalmente desse discurso aplicado a nós, esse grupo social que sempre teve o limite de comportamento como justificativa se podemos existir ou não.
A experiência humana é mediada pela dimensão concreta do corpo. E a vida se encolhe e se expande de acordo com o que esse corpo vivencia, suporta, engole, testa, sente. Então desconfio, desconfio que não seja sábio abdicar do que existe agora por medo do inevitável fim.
até o nosso bem-estar entrou na cultura capitalista da performance.
Gostei da maneira como você formulou o problema. Passo por esses questionamentos há bastante tempo e um livro que me ajudou a rebootar meus pensamentos foi o livro "The female brain" da neurocientista americana Louann Brizendine. Muito interessante pensar que tudo o que conhecemos como "normal", seja em termos de saúde, de beleza, massa corporal, estados psicológicos, etc., vem de um padrão apenas masculino. Todas as variações causadas pelos nossos ciclos hormonais têm sido literalmente descartadas pois "confundem os resultados ". Enfim, continuemos a nos questionar, pois só assim encontraremos respostas que façam sentido para nós, mulheres.