Estive por vinte dias sem celular, sem computador e sem qualquer acesso a internet ou dispositivos eletrônicos. Também estava sem livros, sem papel e caneta para escrever e minha rotina se baseava nos horários de dormir e de comer.
Antes desse recolhimento pensei que ficar sem meus dispositivos eletrônicos (que se tornaram praticamente extensão do meu corpo nos últimos anos) seria extremamente desafiador. Que eu ia surtar em algum momento de abstinência de feed, de conversar com os meus amigos, de trocar memes com o meu marido, de saber como estava a minha filha. Me preparei psicologicamente para isso, conversei mentalmente comigo mesma dizendo que era um período curto e que ia passar. E então finalmente chegou o dia.
As primeiras sensações eram mais de medo de sentir falta, mas conforme o tempo foi passando, rapidamente meu corpo e meu cérebro sentiram alívio. Como se uma sobrecarga sensorial tivesse sido retirada. A coisa que mais me impressionou foi como meu corpo parecia mais atento - eu reconhecia as pessoas pelo cheiro antes delas abrirem a porta. Comecei a perceber o padrão que alguém tocava a campainha (dois toques com pressa - irmã; um longo toque - mãe). O áspero do lençol. O horário pela movimentação da casa e luminosidade. Até as sensações de frio e calor se alteravam, e era possível perceber pequenas diferenças no clima pelo vento. O olhar ficou mais “panorâmico” e de forma gradual comecei a enxergar melhor a profundidade das paisagens. Era como se meu corpo estivesse voltando a funcionar.
Na imaginação também - foi um período onde o cérebro vagou sem medo por imagens muito loucas, tanto nos meus sonhos quanto no período acordada. Um dia sonhei que eu era um coração humano, o músculo. A imagem da carne lisa e rosada pulsando ocupando minha mente integralmente como uma tela wide screen o som compassado das batidas. Até que o músculo liso teve uma contratura. Era um infarto. Depois de um pequeno tremular, a carne se aquietou. O coração morreu, eu era um coração morto.
Não acordei com medo, mas sim maravilhada com o tipo de imagem que meu cérebro estava apto a construir, os pontos de vista que meu inconsciente tomou. Fui terra e vi crescer as raízes para dentro de mim, estive no fundo de um lago vendo o céu através de toneladas de água, boiei em uma cama inflável de gelo no Ártico. A minha vontade era não pegar em um celular nunca mais. Queria continuar navegando nesse novo cérebro livre, experimentando o mundo com os meus sentidos recém libertos.
Porém o período de recolhimento acabou. E a vida de trabalho, família, contas a pagar, em suma, a existência cotidiana precisava ser retomada. E estava lá o aparelhinho, necessário, esperando para ser religado.
Depois de uma avalanche de mensagens no whatsapp - nenhuma urgente, interessante, chocante - o aparelho se normalizou. Mandei as mensagens protocolares, verifiquei email, e com curiosidade e repulsa abri o feed do Instagram.
Fui confrontada com uma avalanche de irrelevâncias, mentiras, tentativas de choque, platitudes, obviedades, fragmentos de nada, anúncios. Em pouco tempo fiquei sobrecarregada, enjoada, pensando quantos anos perdi ali dentro, quanto tempo, quantos nadas, quanta ausência de experiência. Um cansaço imediato. Uma exaustão. Uma saturação.
Na mesma semana que voltei para a vida cotidiana, a segunda temporada da minha série, Rensga Hits!, estreou na Globoplay. Um trabalho feliz, uma história que acredito, uma equipe comprometida e talentosa. Comecei a postar as datas, o material de divulgação oficial, as impressões dos fãs, as notas na imprensa especializada. Não minto: foi uma delícia trocar com quem trabalhou e ouvir quem se sentiu tocado por essa história. O difícil foi entender a hora de parar. Afinal é impossível trabalhar hoje sem dizer que está trabalhando, seria uma espécie de suicídio laboral. Pelo menos é o que dizem.
Em pouco tempo me vi novamente numa rotina de scrolling, hábito sem começo ou fim, apenas uma roda girando em falso dentro das nossas rotinas. Uma sensação de fracasso misturado com culpa como imagino sentirem os adictos tradicionais ao recaírem no consumo das suas substâncias viciantes.
Em defesa das substâncias viciantes, elas pelo menos provocam euforia, relaxamento ou sensação de dissolução do real. Um feed apenas provoca indignação e apatia em doses tão altas que é impossível movimentar o próprio corpo.
Tomei algumas medidas para diminuir o tempo de tela, e conscientemente tentar experimentar o mundo através daquilo que posso sentir, perceber e envolver com meu próprio corpo. Começo esse projeto já sabendo que vou fracassar diversas vezes, mas também com a certeza que dificilmente vou desistir de ter uma vida cada vez menos pautada por irrelevâncias e inexistências. Sabe aquele papo de cair atirando? Pois é.
Quero não me abster da textura da vida, da aspereza das coisas, da atenção ao gesto, do valor da palavra dita. Aquilo que não pode ser reproduzido, monetizado, quantificado. Quero estar presente, num agora que me cabe.
Mas antes claro, deixem-me enviar esse texto para vocês. Não vejo a hora de receber os feedbacks.
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Você pode me seguir no Instagram para me ver não postando mais nada da minha vida pessoal aqui.
A série Rensga Hits! está disponível no Globoplay.
Para saber sobre o processo de escrita da série, saiu uma entrevista minha na Billboard.
Ahhh que lindeza esse relato!
Acabei de voltar do famoso -Caminho de Santiago- com uma longa caminhada de uns 20-25 km por dia por uns 13 dias (em teoria) e uma das coisas que eu queria daquele caminho era paz, sossego, paisagens bonitas, uns kilos a menos (no corpo fisico), um pouco de clareza sobre varias coisas que a minha mente fica pirando e menos rede social... bom o caminho foi uma bela BOSTA! Começou com dias de incendio em Portugal, medo, sentimento de insegurança e tal, muitas dores, muitos km, poucas paisagen visiveis e dias cinzas (que era aquilo que eu menos queria) e ai eu e meu companheiro nos jogamos em um mundo infinito de scroll (quando nao estavamos caminhando) e comida, muita comida, muitaaa comida as comidas foram com toda certeza a coisa mais CONFORT que tivemos e como dizer nao ? Quando tudo doì, nada faz sentido... a parte de reduzir a tecnologia estava no plano, mas como nada do que estava no plano aconteceu entao a tecnologia tambem acabou ficando (infelizmente).
Anos atras eu fiz um retiro de meditaçao de 10 dias de silencio absoluto e nada de tecnologia, livros ou conversas. No inicio achei que vc tinha feito a mesma coisa mas acho que foi diferente. Eu achei que o caminho ia ser meio isso, mas foi tudo diferente. Enfim, continuo precisando daquele retiro :| que eu tanto queria!
Me identifico completamente com você, Re! O Instagram me traz a mesma sensação de agonia e não-pertencimento. Não dá onda nenhuma, só gera frustração. O cérebro derrete, me sinto mais burra, mais impaciente. Por aqui, regulo meu tempo acessando de 2 a 3x na semana, mas ainda acho muito porque, quando acesso, acabou exagerando no uso. Seguimos tentando, né?