Leitores à beira de um ataque de nervos
A adaptação de Bridgerton causou uma guerra civil entre fãs nas redes sociais. Que bom!
Já mencionei em algumas entrevistas e podcasts e mesmo espontaneamente a quem não me perguntou: sou fã de romancinho. Uma verdadeira entusiasta de histórias de amor, uma consumidora não voraz, mas consistente, de comédias românticas e séries adolescentes onde a conquista e o sofrimento amoroso estão no centro da narrativa.
Sou uma mulher feminista, e há quase duas décadas militante de causas espinhosas como a legalização do aborto. Provavelmente eu deveria achar esse tipo de narrativa uma bobagem, e voltar minha atenção para histórias de triunfo feminino que se afastassem ao máximo da ideia de vitória amorosa. Mas isso seria uma leitura superficial: infelizmente além de fã de romancinhos, eu tenho uma formação marxista bem sólida e sou uma investigadora de mim mesma. Uma detetive diligente que não se cansa de buscar evidências dos próprios gostos e comportamentos (talvez por isso uma viciada em sessões de análise).
Do marxismo eu trouxe a convicção que não existe triunfo possível para as mulheres sob o capitalismo. A narrativa da girl boss que tudo pode, tudo conquista, ganha dinheiro, pisa nos outros e chega no topo da carreira para mim soa enfadonha e uma propaganda mal disfarçada do liberalismo que quer arrancar nosso couro, roubar nossa juventude e monetizar nossos prazeres e habilidades para gerar lucro para grandes corporações. A cada Cinderela capitalista que transforma o sapo da pobreza (ou do tédio) em milhões de dólares, existem milhões de outras na miséria sem chance nem de começar.
Da investigação de mim mesma veio o inventário das minhas paixões românticas. Momentos onde fiquei completamente inútil ao meus país, dividida entre uma prostração imaginativa vitoriana e com uma obsessão pueril com a pessoa amada. O mundo se resumia ao jogo, aquele pequeno espaço de tempo onde tudo daquela pessoa me parecia tão interessante quanto uma terra estrangeira. Aqui eu posso usar “viagem” como uma metáfora dupla: eu gostaria de conhecer tudo sobre você, terra estrangeira, mas sinto que serei apenas uma turista. Prevejo o fim, mesmo que o ignore. Vou percorrer todas as suas ladeiras, entrar em todas as suas lojinhas, mergulhar em todas as suas praias, ouvir todos os seus sotaques, vou comer toda a sua comida, a sobremesa, beber o café, vou deitar no seu chão e encarar as suas estrelas e pensar de forma ingênua: vou me mudar pra cá e não quero voltar para casa nunca mais. A segunda metáfora é a viagem sob a influência de substâncias psicodélicas mesmo. Você vai se perguntar “bateu?” e ao confirmar “sim, bateu” viver aquilo como se a ressaca não fosse chegar nunca.
Existe material melhor que esse para uma história?
É lógico que o mundo real vai tentar tragar você para as coisas mais chatas possíveis: as contas, os eventos sociais, o trabalho insuportável, as horas desperdiçadas onde você não está falando, transando, se perdendo na pessoa amada. O antagonista perfeito: o mundo inteiro ao seu redor que nada mais faz além de exigir que você viva longe do seu objeto de estudo e adoração.
E essa é a estrutura que podemos observar nas três temporadas da série Bridgerton, adaptação da mítica showrunner Shonda Rhimes para os livros best sellers da escritora Julia Quinn. A série está disponível na Netflix.
Shonda Rhimes é uma autora bem produtiva, há vinte anos sua produtora Shondaland emplaca um sucesso atrás do outro, tanto na tv aberta norte americana quanto nas plataformas pagas de streaming. Grey's Anatomy é sua obra mais famosa, mas eu a conheci como roteirista de “Crossroads” longa metragem protagonizado pela cantora pop Britney Spears. Na história, três amigas afastadas se reencontram para fazer uma viagem de carro da Lousiana até a California. Apesar de ser uma encomenda - o plot foi criado pela equipe de Britney e desenvolvido por Shonda - o estilo da autora estava impresso ali. Um estilo que eu carinhosamente chamo de cavalo de troia.
Bom, todos estão familiarizados com a história do cavalo de Tróia, certo? Os gregos ganharam a guerra fingindo dar de presente para os troianos um cavalo de madeira gigantesco e pedindo trégua. Os troianos abriram os portões de sua fortaleza impenetrável e botaram o cavalo para dentro. Mas escondidos na barriga do cavalo estavam os mais ferozes soldados gregos, que durante a noite saíram de seu esconderijo e destruíram a cidade, capturaram Helena, e queimaram tudo até virar pó.
Shonda nos dá um cavalo: a paixão de uma residente de medicina por um cirurgião famoso e casado. E nos dá o que está dentro da barriga da história: uma protagonista que precisa superar o desamor da mãe e suas próprias inseguranças para se tornar a mulher que quer ser. Meredith Grey em Grey's Anatomy é apresentada como uma mocinha romântica (cavalo) e é desenvolvida como uma mulher feroz na busca pelos seus objetivos e no combate dos seus demônios internos (soldados gregos). Em seu mais novo sucesso, Bridgerton ela faz a mesma coisa que fez desde que colocou uma caneta no papel. Vou te contar histórias de amor clássicas e açucaradas cheia de erotismo contido (cavalo) mas vou te dar também debate racial, discutir a sexualidade de mulheres 50+, a importância da satisfação sexual nos relacionamentos e os limites do que é ser uma mulher em uma sociedade estratificada e conservadora (soldados gregos).
Entendem o valor de um romancinho bem escrito? A história de amor acaba sendo uma narrativa que tem a liberdade de falar sobre mulheres, sobre o desejo das mulheres, suas aspirações, conflitos e descer de uma forma suave, gostosa. Tramas que escritas por homens nos séculos passados eram tramas de "precaução” que ensinavam as mulheres que se elas se apaixonassem da maneira errada (fora do casamento) o destino delas era a loucura a clausura ou a morte. Quando escritas por mulheres no século XXI podem ser sobre se tonar quem você quer ser, e a paixão o motor para essa transformação.
No quesito cavalo de Tróia a terceira temporada de Bridgerton é a mais bem sucedida. Na primeira o conflito central se concentrava entre pureza e lascívia, na segunda entre o amor e o dever, na terceira a protagonista Penelope Featherington já encontrou o amor da sua vida muito antes de se apaixonar pelo mocinho da trama, Colin Bridgerton. E o amor da vida de Penelope não é um homem - é a escrita.
Rejeitada pela família, vista como a amiga, a coadjuvante, Penelope escreve secretamente um jornalzinho de fofocas com o pseudônimo de Lady Whistledown. para manter seu segredo, a autora ferina, o Leo Dias de seus tempos, também escreve sobre as pessoas que ama: sua família, sua amiga Eloise, e claro, seu crush, Colin. Quando o rapaz resolve corresponder ao amor de Penelope ela deve escolher entre a escrita e o casamento.
Toda estrutura da temporada é de um romance clássico, onde a mocinha luta pelo seu amor impossível (cavalo). Mas o amor impossível é exercer seu talento e finalmente unir as duas identidades que a habitam: mulher da sociedade (que não precisa trabalhar e cujo único objetivo é casar e dar herdeiros ao marido) e autora (uma pessoa que trabalha e recebe dinheiro pelo seu labor). a trajetória de Colin passa a ser de homem que é capaz de amar uma mulher que não suportaria ficar na sua sombra. Amar de igual para igual (soldados gregos).
Isso causou um rebuliço nas redes sociais: fãs da história original se revoltaram. Sentiram falta de desenvolvimento e tempo de tela para o romance entre Colin e Penelope. Para quem não sabe desenvolvimento e tempo de tela são termos usados por profissionais do audiovisual - autores, executivos, diretores - para tratar da escrita das histórias que são filmadas. Os termos se popularizaram e vazaram para os fandoms como sinônimo de “a história não foi contada como eu desejaria / gostaria / esperava” .
Adaptar uma história para diferentes mídias é uma tarefa ingrata, mas ela serve exatamente para isso: promover mudanças no original. Quem adapta deve sempre procurar uma nova perspectiva que faça sentido e se adeque ao formato. Nisso, a terceira temporada de Bridgerton foi bem sucedida e ao meu ver, bem mais interessante do que as outras.
Mesmo já tendo trabalhado numa novela, que é o produto audiovisual que mais movimenta debates no Brasil, sempre me surpreendo quando uma trama ficcional causa esse nível de paixão. Defensores de livros se colocando contra espectadores de séries, argumentando, perdendo as estribeiras. Dá uma esperança a respeito do futuro. Histórias importam. Mobilizam. Fazem o sangue subir à cabeça. Modificam a nossa visão de mundo.
Quando a segunda parte da terceira temporada foi lançada, o debate sobre adaptação se acirrou ainda mais. A história a ser contada na próxima temporada será a de Francesca Bridgerton. Ao contrário de sua família, Francesca é tímida, silenciosa, vive em um mundo interno rico, que não compartilha com ninguém. Nos livros ela se casa por amor com John, um homem gentil e muito parecido com ela. Mas John acaba falecendo e Michael, seu primo, volta das Índias Ocidentais de colonização britânica para conquistar seu coração.
Nos trinta segundos finais da terceira temporada da série, os expectadores são apresentados para Michaela, sinalizando que a quarta temporada terá uma trama romântica protagonizada por duas mulheres.
Mais uma vez as redes sociais responderam a essa mudança. No X, antigo twitter, os fãs dos livros de Julia Quinn acusam Shonda Rhimes de querer “lacrar” e as autoras e fãs de histórias sáficas se empolgaram e defendem as mudanças. Acompanhei de longe algumas threads com insultos homofóbicos e lesbofóbicos direcionados à nova trama, à Netflix e aos criadores e roteiristas. As espectadoras da série apelidaram as leitoras do livro de “bancada evangélica" - desculpem, eu ri. O debate e as baixarias seguem quentes até o momento que eu escrevo essa newsletter para você. Mas outra coisa me chamou a atenção.
O livro de Julia Quinn protagonizado pela personagem Francesca é centrado na ideia de maternidade como objetivo da mulher casada. Francesca sofre diversos abortos antes de John morrer, e apenas Michael é capaz de dar o herdeiro homem que a família merece. Se fosse eu a escrever a quarta temporada, usaria um cavalo de troia tal qual Shonda ensinou. O cavalo seria o romance sáfico, que mobilizou as redes sociais antes mesmo de acontecer. Os soldados gregos a trama que questionaria a ideia de maternidade como realização feminina única - um debate bem explosivo se formos pensar em termos de tramas românticas. E quer saber? Acho que Shondão é bem capaz de ir por esse caminho.
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E por falar em maternidade compulsória, estive a convite do Instituto Cervantes, da Editora Zahar e da Livraria Janela do Rio de Janeiro no evento de lançamento de As Abandonadoras, de Bergoña Gómez Urzais. O livro tem ensaios sobre mulheres famosas da cultura pop e do meio literário que abandonaram seus filhos e é escrito com humor e honestidade - dois adjetivos que não são usados quando o tema é maternidade. Além de mim, debateram Karla Tenório, atriz e idealizadora da página de Instagram Mães Arrependidas e a mediação foi da querida Claudia Lamego. Foi uma noite de emoções intensas. Recomendo muitíssimo o livro pelo que é mas também pelas deliciosas fofocas literárias e pelo seu primeiro parágrafo divertido, que argumenta que a melhor maneira de ser um escritor de sucesso é arranjando uma esposa de escritor.
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Hoje temos mais uma edição da oficina “Fazendo Drama”
O tema de hoje é “Subindo nos ombros dos gigantes”. A gente não escreve sozinho, escrevemos com que veio antes da gente, escrevemos com os nossos pares no presente, escrevemos com o futuro que queremos construir. Escolham bem os ombros que querem montar.
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Um aviso importante: eu não recebo originais, propostas de livros, não vou ler o seu roteiro. Por questões contratuais, para me preservar de possíveis semelhanças entre meus projetos e as obras e também porque eu não tenho tempo. É duro falando assim, mas isso acontece muito, de receber material não solicitado no meu email - que eu não abro. É melhor ser honesta e não deixar ninguém perder seu tempo. Eu não tenho o poder de publicar, nem contatos para viabilizar seu filme. Caso você tenha um original, o envie para editoras ou pense na auto publicação. Caso você queira fazer um filme, procure uma produtora audiovisual, e/ou festivais de roteiro como o Frapa, Sesc Argumenta ou o Br Lab.
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Um exercício de adaptação para os leitores: escolha um parágrafo do seu livro favorito (ou poema, ou cena de série ou filme). Leia com atenção. Sinta o prazer de estar em contato com esse texto.
Agora o reescreva. Escolha um aspecto importante para modificar. O gênero ou a raça do protagonista, o tipo de narração, a ambientação. Simplesmente o faça, sem respeito, sem pena. Traia o texto original. Esqueça a boa moça que não tem coragem de “mexer no que é dos outros” e o bom moço que respeita o gênio de seus heróis. Mate os seus mestres e encontre o autor que você é.
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Adaptações que eu amo
O filme “Dez coisas que eu odeio em você” e a novela “O cravo e a rosa" são adaptações brilhantes de Megera Domada de Shakespeare.
O clássico “Emma” de Jane Austen foi reescrito como o também clássico “As Patricinhas de Berverly Hills”
“Easy A” é uma comédia adolescente diretamente copiada e colada do dramão “A letra escarlate” - O original foi relançado pela editora Antofágica e eu escrevi uma apresentação que gosto muito.
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Até a próxima edição de Fazendo Drama!
Afe, como é bom te ler ❤️
E escuto sua voz no fundo
o desfecho da terceira temporada é um primor mesmo :) eu notei que o arco do casal Mondrich sobre manterem o bar ou não depois de receberem títulos de nobreza serve também para exemplificar o que escrever (trabalhar) significa na vida pública da Penelope. mas falando com amigas, percebi que as pessoas tendem a separar a questão racial da questão de gênero, quando na verdade elas sempre são atravessadas uma pela outra e eu acho q a turma ds Shonda botou isso sutilmente ali. enfim, curiosa para acompanhar o que vem por aí 😊