Uma garotinha sino-japonesa está ajoelhada na esteira, olhando concentrada para o seu pai. Ela está fazendo quatro anos, e por isso está vestindo seu quimono mais bonito. O pai, um calígrafo talentoso, molha o pincel na tinta vermelha e escreve no rostinho uma saudação de aniversário:
“Quando Deus fez o primeiro modelo de barro de um ser humano, Ele pintou os olhos, os lábios … e o sexo. Depois ele pintou o nome de cada pessoa para que o dono jamais esquecesse. Se Deus aprovou Sua criação, Ele trouxe à vida o modelo de barro pintado, assinando seu próprio nome”.
A cena acontece no filme “The Pillow Book” (Livro de cabeceira) do diretor inglês Peter Greenway. Lançado em 1995, o filme me fascinou quase dez anos depois do seu lançamento, quando o assisti pela primeira vez e decidi fazer dele o tema do meu TCC na faculdade de cinema.
O filme ficou guardado em mim como se fosse um tesouro. Nunca mais o reassisti. Como naquelas paixões antigas e intensas que você não sabe se torce ou não para reencontrar o ex amante pelo medo duplo que nos assalta:
1 - o medo daquele sentimento não ter passado, e você cair de novo no feitiço do amante;
2 - o medo da repulsa, onde o feitiço foi totalmente quebrado e só existe o estranhamento;
(Todo esse sentimento está condensado em um poema que eu não lembro qual, que não sei se de Ana Cristina César, Caio Fernando Abreu, Bruna Beber, Matilde Campilho que diz algo sobre como é triste ver o ex amante vestido - se alguém lembrar qual é, mande uma carta para a redação).
Depois que criei o workshop “Fazendo Drama” tive vontade de revisitar toda ficção que fez o meu coração bater mais forte, e intuitivamente The Pillow Book estava lá, pedindo, implorando pelo meu olhar. Tanto que quando fui procurá-lo, ele já estava salvo no meu HD de filmes.
Foi interessante ver, cena a cena, que a semente de quem eu viria a ser como artista e pessoa já estava ali no filme. Eu poderia dizer muitas coisas. Analisar à luz da psicanálise - afinal a protagonista Nagiko deseja se tornar autora a partir da falta que o pai faz; ou mesmo da análise cinematográfica, pois Peter Greenway constroi uma cinematografia moderna, cheia de colagens que antecipou até a estética dos Instagram Stories que vemos hoje sem cessar no nosso vício em redes sociais. Mas preferi me concentrar numa crença pessoal mesmo, que só se fortaleceu com anos e anos de escrita:
Escrever não é unicamente uma atividade intelectual.
Entender a escrita como uma coisa que só acontece dentro das nossas cabeças limita a pessoa criadora. Essa ideia equivocada ergue muitos tabus para realizar o ato da escrita, que é ao mesmo tempo complexo, mas também simples e natural. Como resultado muitos de nós acabamos desistindo antes de começar. A gente acha que precisa saber mais, entender mais, ler os livros certos, ser mais concentrado, menos brega, saber exatamente o que vai escrever antes de começar, saber como vai terminar, ser original e escrever o que ninguém escreveu antes - ou seja, ser outra pessoa. A pessoa ideal que escreve.
A grande revelação é que a pessoa ideal com os atributos perfeitos para criar não existe. Essa fome é distribuída aleatoriamente entre os seres humanos.
Quando acreditamos que a escrita é uma atividade puramente mental ou intelectual estamos abrindo mão de uma infinidade de perspectivas. O intelectualidade é a palavra utilizada para determinar um tipo de pensamento. Ele não é melhor nem pior que outras formas de pensar e escrever, ele é parte do cânone. Só que esse imaginário está tão presente que quando pensamos na palavra escritor e na figura de um intelectual, pensamos também um corpo: masculino, de meia idade, num grande centro urbano, numa certa condição social com uma certa experiência acadêmica. Alguém que quando abre o computador ou o caderno pode trancar a porta para os filhos, para a campainha da entrega, para a atividade doméstica incessante. Alguém que está ausente de emoção e interrupção. Uma máquina com uma meta, alguém que tem um plano, uma estrutura e conhece um segredo sobre a escrita que não pode ser acessado pelos outros. E assim sairia o texto, lindo, limpo, genial e editado por debaixo da porta trancada.
Eu nunca me conformei com essa frieza. Durante muito tempo me achei cafona e inadequada pois chorei escrevendo cenas emocionantes, ou ri das piadas dos meus próprios personagens. Não por ser uma escritora excepcional, mas pelo fato de me permitir sentir e mudar o rumo das coisas caso esse sentimento apontasse para a direção oposta do meu planejamento inicial.
Grande parte da escrita acontece com o corpo e com a emoção. Esse tripé de intelecto, corpo e sentimento acompanha o escritor, e conforme você avança na sua prática vai entender que tipo de autor você é. E também que projetos diferentes vão exigir mais ou menos esforço de uma dessas pernas.
“A vulva é uma ferida aberta” é o livro de ensaios da autora queer feminista Gloria Anzaldúa. Lá ela fala da experiência de ser uma autora fora da norma do que se parece um autor. Sobre escrever nas brechas, tentando sobreviver, sendo uma mulher trabalhadora, latina. Um texto que ajuda ao mesmo tempo, a se enxergar melhor e a sair de si.
Em The Pillow Book a escrita é uma atividade erótica, elaborada, às vezes fetichizada, mas principalmente um ato de puro desejo. Quando o pai assina o próprio nome na nuca da pequena Nagiko, ensina que ela foi criada por ele, com toda grandiosidade do verbo criar: o seu corpo criou o corpo de Nagiko através do sexo. Ele a criou ao cuidar, zelar, enxergar aquela menina. E também a criou como invenção - uma das partes mais difíceis de ser ter filhos, afinal. Como sabemos, o destino da criatura é se libertar do seu criador.
Nagiko obedece e se liberta descobrindo que não precisa ser uma folha em branco. Tornar-se uma mulher adulta é se entregar ao prazer erótico da escrita. Ela se permite ser a dona da própria história, assim como a sua musa inspiradora, Sei Shonagon, autora do primeiro livro de cabeceira.
Por fim, para a contagem regressiva do nosso encontro de escrita criativa, pego emprestada a famosa frase da escritora Toni Morisson que diz:
“O amor nunca é melhor que o amante. Quem é mau, ama com maldade, o violento ama com violência, o fraco ama com fraqueza, gente estúpida ama com estupidez, e o amor de um homem livre nunca é seguro".
O trecho está no livro “O olho mais azul” e sempre que a leio, mentalmente eu substituo a palavra “amor” por variações da palavra “escrever". É inevitável para mim pensar “A escrita nunca é melhor que o escritor, quem é mau escreve com maldade, o violento escreve com violência, gente estúpida escreve com estupidez e a escrita de uma pessoa livre nunca é segura”
Talvez porque amor seja uma palavra puída, dessas que estão tão gastas que se não forem muito bem empregadas acabam querendo não dizer nada. Não é o caso de Toni Morisson que escreve de forma brilhante. Mas esse é um exercício que faço involuntariamente, de ir substituindo a palavra amor por outras, de maneira que o amor se transforme em outros atos, em outros imaginários.
Por isso te convido, inscrito ou não no workshop “Fazendo Drama” a pegar a sua letra de música favorita, seu poema, seu trecho de livro cheio de amor e substituir essas quatro letrinhas por outra coisa: um rabisco, uma rasura, um espaço em branco, um desenho ou mesmo - que ousadia! - outras palavras que transformem o seu sentido.
Se possível tente fazer à mão, com papel e caneta / lápis. Se não for possível, com o seu celular, tablet ou computador.
Caso se sinta à vontade e goste do processo, pode postar o resultado marcando a minha @ no Instagram: recorrea e a #FazendoDrama que eu resposto nos meus stories.
Também adoraria saber as impressões de vocês sobre “The Pillow Book". Acho que tem no Mubi, mas se não tiver, a internet é vasta e os pecados são todos meus.
Até breve,
Renata C.
Querida, era tudo o que eu precisava: tua newsletter! Que felicidade 💜 E lindíssimo o texto e a proposta do exercício
É bom demais encontrar vocês por aqui 💜