Verdades, mentiras e a eterna pergunta
Afinal se a palavra não vale mais nada por que continuamos escrevendo?
Semanas atrás aceitei um convite para um encontro com escritores. Sou péssima para controlar a minha própria agenda, e mesmo seguindo o método de abrir o google calendar e imediatamente salvar qualquer coisa que eu marquei - dentistas, compromissos familiares, eventos escolares da minha filha, até minhas sessões de análise - às vezes passa alguma coisa. Foi o caso desse encontro que eu queria muito ir, mas simplesmente ele não estava lá, no tal calendário. Como prova da minha culpa, respondi ao convite de maneira entusiasmada em diversos meios digitais.
Fato é que no domingo lembrei (ou descobri) que atravessaria a cidade em plena segunda-feira de manhã para estar na companhia de outros autores, os ouvindo, trocando. Se não fosse isso, talvez não fosse. E foi uma ótima decisão. Tem poucas coisas mais tranquilizadoras para uma autora do que ouvir Cida Bento e Sidharta Ribeiro falando que são desorganizados, que a rotina de escrita é uma bagunça por um motivo simples: a vida se infiltra na escrita. O filho, o neto, o interfone, os trabalhos que pagam as contas. Ufa, não sou só eu tentando cumprir a tarefa impossível de criar entre uma limpeza de tártaro e a organização da festa de aniversário da minha filha.
Durante o encontro, a pergunta que mais ecoou entre os presentes foi da médica Jurema Werneck. Era sobre a utilidade da escrita em um contexto político onde as palavras estão sendo usadas para distorcer a realidade.
Foi uma pergunta tão precisa, honesta. Direto ao ponto.
Ficou pairando ali na sala essa pequena aura da não-solução.
Afinal as palavras não são neutras, um argumento não é neutro. Uma história sempre parte de um ponto de vista, uma perspectiva, um pequeno fragmento do que chamamos de real.
Qual a diferença então entre mentir para alguém e convencer alguém?
Qual a diferença entre não-ficção e mentira?
Quem decide o que é falta não intencional (e segue o jogo) ou carrinho covarde (digno de expulsão)?
Não tenho essa resposta, e quando penso só posso devolver o meu ponto de vista. De mulher, classe média, branca, mãe, moradora de um grande centro urbano, letrada em valores católicos, burgueses e de esquerda e que encontrou no feminismo e no candomblé práticas políticas e de fé que a contemplam mais.
O que essa mulher pode responder? A minha resposta seria mais ou menos assim:
Existe um mundo em disputa, e não é uma disputa entre o bem e o mal. Seria leviano navegar em conceitos tão absolutos. Mas sinto que, em maior ou menor grau, nossa sociedade dita civilizada lida com um desejo e uma pulsão de morte. Uma atração pela aniquilação do outro e também a auto-aniquilação. A perplexidade diante do terror e daquilo que não pode ser dito produz isso. Apatia, prostração, mas principalmente ódio. A arena dessa disputa é complexa, pois além de política e coletiva é individual. Conseguiremos admitir em nós essa violência, o desejo pela mentira, pelo poder, por vencer para poder recosturar o tecido que separa eu de você? Como afirmar um desejo pela vida e pela nossa continuidade se estamos acuados e chocados?
Ao meu ver pela insistência em admitir a beleza e o horror de estarmos vivos nesse mundo, com todo seu absurdo. Abraçar o contraditório, o estranho, o errado, o que está além do virtuosismo das boas intenções. Defender o que é humano e o que é humanidade principalmente onde ela é desviante.
A disputa não é entre nós e eles, e sim entre nós e nós, humanos, que assim como Penélope, costuramos nossa tapeçaria pela manhã, para desfazê-la à noite. E se esse tecido não parar de se romper, deixando o bordado das experiências comuns cada vez mais deformado e incompreensível, nenhum de nós vai sobrar aqui para contar a história.
Nós, narradores, estamos dispostos a isso? Ao tamanho dessa tarefa?
E essa é mais uma pergunta que eu deixo para quem me leu até aqui.
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No último domingo estive na passeata pela legalização do aborto em Copacabana. Foi emocionante ver as mulheres organizadas para defender nossos direitos, nossa cidadania plena. Sinto uma mudança se apresentando, apesar de tudo.
Uma das coisas que achei mais bonitinhas foi um grupo de jovens vendendo seu jornal impresso “A Verdade”. Uma amiga minha fez um pix de dois reais e lá estávamos em contato com a pura utopia. Um menino, numa passeata num sol escaldante de domingo carioca defendendo que existe uma verdade, límpida, única. Taí um ser humano que não tem pudor nenhum de disputar o poder das palavras. Nenhum de nós deveria ter.
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Hacks, a série da HBO sobre a relação de uma estrela da comédia com a sua roteirista chegou na sua terceira temporada melhor do que nunca. Criada pelo trio Lucia Aniello, Paul W. Downs e Jen Statsky, as tramas de choque geracional, relação de amizade entre mulheres e criatividade tem humor fino e construção de personagens perfeita. É impossível não se apaixonar por Deborah Vance e Ava. Um exemplo bem acabado de narrativa que tem um ponto de vista claro mas é generosa o suficiente para te apresentar outros.
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Acabo de ler e estou completamente órfã do livro “A mais recôndita memória dos homens” de Mohamed Mbougar Sarr. O autor franco-senegalês abocanhou o Goncourt, maior prêmio da literatura francesa, debochando e homenageando a própria literatura, os prêmios, os escritores com uma narrativa fragmentada de diários, relatos, cartas. Um quebra cabeças que o protagonista Diégane tenta montar para descobrir quem é Elimane, um escritor compatriota, maldito e genial que escreveu um único livro e desapareceu.
Estou tão obcecada que recomendo esse livro aleatoriamente para quem não me perguntou sobre ele.
Não é isso que é o amor, segundo Lacan? “Dar aquilo que não se tem a quem não pediu". Indicação de livro bom é amor. Sintam-se alvo do meu afeto.
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E mais um exercício de escrita para os leitores e amigos dessa newsletter. Pode ser feito no seu lugar habitual de escrita ou você pode levar seu computador ou caderninho para um café, um parque, uma biblioteca.
Largue a caneta, celular ou lap top.
Pare de digitar / escrever.
Olhe ao seu redor. Tome seu tempo para absorver cada detalhe do ambiente.
Agora pegue sua caneta ou o seu dispositivo eletrônico e descreva esse lugar. Os objetos desordenados, as pessoas ao redor, a movimentação da rua, ou a ausência de movimento do seu próprio escritório. Não esqueça os sons e a temperatura. Sinta a escrita fluir quando o mundo te entrega ela de bandeja. Não há esforço, não há resistência. É olhar, e reproduzir. Como se fosse uma foto. Click!
Guarde bem esse tesouro. Por um dia. Dois. Quantos quiser.
Depois desse tempo vá para outro ambiente, diferente daquele que você descreveu e refaça o exercício de memória. O que aconteceu naquele período de tempo onde você escrevia? Onde estavam as coisas e as pessoas? O que você sentiu, o que você viu? Como estavam os objetos e porque eles estavam lá?
Agora compare os dois textos.
O que eles têm de semelhantes? De diferentes? O que você pode observar entre relatar e narrar? A velocidade, o tempo?
Às vezes não é tão longa a distância entre viver e contar - mesmo que no tempo cronológico os dois atos estejam separados por anos, décadas, cometas.
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Até a próxima edição de Fazendo Drama. Espero vocês no futuro.
Com esperança,
Renata C.
todos temos que nos assenhorar de nossas palavras. do contrário, falam por nós ou nos silenciam. e aí já era…
Já que perguntou aos leitores… existe um caráter de luta na tua resposta sobre escrita, e eu não acredito que isso justifique de fato a arte. Cada vez mais acho que a gente escreve porque quer, como queremos e precisamos ocupar o tempo num dia qualquer. Quanto mais se busca um sentido à arte, ou a qualquer atividade inadequada ao capitalismo, menos sentido ela faz. Nada vai durar, poucos de nós serão lembrados mesmo daqui a uma geração. Pouquíssima gente lê. Eu escrevo contra muito do que vejo e costumo dizer que meus contos e livros são ataques ao que odeio no Brasil, mas a maioria dos leitores não deve sentir essa relação direta e minhas histórias nada podem contra o Brasil. Minha cabeça sabe disso, mas não importa, porque quer criar histórias. Além disso, quase todos os livros que nasceram para defender algo não duraram ou perderam esse caráter belicoso com os séculos e resistem exatamente por isso. 🤷🏻♂️