Acordei com a notícia da morte do sumo Pontificie da Igreja Católica, o Papa Francisco II. Logo liguei na Globonews e fiquei comovida com as manifestações de fé de seus fiéis, já fui fuxicar quem eram os possíveis sucessores, e principalmente, fiquei curiosa com a escolha dos ritos fúnebres.
Alguns dos meus amigos próximos sabem o quanto sou uma entusiasta da morte como tema. Como morrer, quando morrer, decidir morrer, o que fazer com o corpo depois de morrer. Como as pessoas morriam antigamente, de forma pública, e por que morremos de forma tão fria, solitária e escondida agora. O interesse começou quando li em algum livro - e jamais vou me lembrar qual - sobre como antropólogos entenderam que havia um sentimento de afeto vinculando pessoas do mesmo grupamento pré-histórico.
O corpo de uma mulher foi encontrado mumificado e submerso em uma cidade da Itália. Seus restos mortais datavam de milhares e milhares de anos, e pelos exames feitos, a mulher precisou de cuidados durante toda a sua vida. seu maxilar era quebrado, assim como seus quadris e as calcificações mostravam que ela vive muito tempo assim, não eram machucados recentes. Logo, ela precisou ser locomovida, banhada, alimentada; e na sua sepultura podiam ser identificados ornamentos e restos vegetais que só eram encontrados há muitos quilômetros dali. É comum pensar que em sociedades pré agrícolas, em grupamentos nômades ou semi nômades um membro do grupo só serve se estiver em plena atividade. Puder colher, caçar, parir os filhos, estocar os alimentos. O caso desse cadáver mostra que além de merecer cuidados mesmo sem poder falar ou se mexer sem ajuda, essa mulher também inspirou que seus companheiros vivos se afastassem do bando para homenageá-la com aquilo que consideravam mais bonito e precioso. A relação entre as pessoas desse grupo não era apenas funcional. Envolvia algo que podemos chamar de amor.
Encontrei histórias que podiam se relacionar com essa no livro “O despertar de tudo - Uma nova história da humanidade” de David Graeber e David Wengrow, um livraço que reconstrói e cria novas hipóteses para as origens da desigualdade, remontando as estruturas diversas das sociedades forrageadoras , caçadoras coletoras e não-agrícolas. Divertido demais.
Quando soube que o Papa Francisco decidiu por ritos fúnebres simples, mandei uma mensagem para o meu amigo Paulo recomendo o livro e lembrando como a morte tem essa capacidade de nos lembrar do amor. Sempre muito lúcido, o Paulo me relembrou que o capitalismo gosta de esconder a morte para nos manter nessa ilusão de que vamos nos foder na mão do patrão e comprar descontroladamente para sempre. Morrer em hospitais, sem parentes, seu corpo ir para funerária e não ser mais velado em casa e sim numa sala fria, com hora para acabar, faz da morte essa coisa escondida, rápida, asséptica sem tempo para o pranto e para o luto. Francisco quer um funeral para o povo, uma lápide, simples, sem adornos especiais e com uma única palavra: Franciscus. Quis lembrar que a morte estava próxima de nós e como isso é uma benção muito mal compreendida.
Eu decidi parir minha filha em casa e gostaria imensamente de morrer em casa, segurando a mão das pessoas que eu amo, com elas ao meu redor. Universo, anote. Não me deixe numa cama de hospital sendo furada e cutucada, com ar condicionado horrendo e gente que eu não conheço vendo a minha bunda. Não sei se será possível, mas fica aqui o meu registro.
Uma boa lembrança de como viver pode ser imenso é a nova série da Hulu / Disney + “Dying for sex” inacreditavelmente traduzida como “Morrendo po sexo” e não “Morrendo de tesão” que foi a minha escolha para o título desse texto. Baseado numa história real, narrada em um podcast, Dying for sex é uma espécie de odisséia sexual de uma mulher que descobre um câncer estágio 4. O elenco é impecável, mas o show é da atriz Michelle Williams que cria uma Molly de uma vulnerabilidade tão tocante que é impossível lembrar que estamos diante de uma obra de ficção. Vou até pedir licença e ser cafona aqui, pois a única palavra com a qual posso descrever a sensação de ter assistido é transformada. E vou deixar minha cafonice ressoando aí na sua mente.
Falar de mulheres e sexo é sempre um tabu, não porque não estejamos super expostos a estímulos sexuais o tempo inteiro na tv e na internet. Tem muita gente falando de sexo, se filmando fazendo sexo, vendendo ou simplesmente se exibindo. O problema é que quando se é mulher nunca é o jeito certo de se falar do assunto. Estar “Morrendo de tesão” é feio de admitir, é um pouco descontrolado, é fora do tom. Talvez por isso eu tenha ficado tão enganchada ao livro novo da Tati Bernardi a auto intitulada “A boba da corte”.
Apesar da Tati-personagem estar o tempo inteiro num jogo de pesos e contrapesos de contenção e descontrole, ela está saudavelmente morrendo de tesão. Pelo namoradinho de elite, que surge sendo objeto de desejo e repulsa desde o segundo um, mas está morrendo de tesão pela história que ela quer contar e que morria de medo de publicar. O medo era o medo da morte, dessa morte simbólica que os traidores de classe sempre tem dentro do coração.
A Tati provoca paixões, assim como toda mulher que diz o que pensa e conquistou o microfone para fazer valer esse direito. Em coluna no jornal, mas principalmente agora como entrevistadora e video/podcaster, é impossível não ouvir sua voz ou os ecos do que ela diz. Mas a encarnação dela que eu mais gosto é a de escritora. “Você nunca mais vai ficar sozinha” é uma pérola e esse novo exercício de honestidade radical é tudo menos escrever qualquer coisa que passa na cabeça, como muita gente diz por aí.
Morrer de tesão, trair a elite e ser raivosamente engraçada. Falhas imperdoáveis em uma mulher. Tati Bernardi comete os três crimes em A boba da corte. Que bom. Estou exausta de virtuosismo asséptico de rede social e o engenho da Tati é justamente esse: fazer parecer que o impublicável pode ser publicado novamente. No regrets.
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Ainda sobre o tema amar e morrer:
Câncer com Ascendente em Virgem é o novo filme da Rosane Svartman, uma comédia sobre uma professora que descobre um câncer de mama. Roteiro da amada Martha Mendonça.
Reli Desonra do Coetzee e fiquei sem dormir. Que fui eu inventar de reler esse livro enquanto estava doente, meu Deus?
Mas assim como Desonra, “O estranho caso do cachorro morto” usa esse recurso terrível da morte pet para nos envolver em uma história. Livro delícia para ler com os adolês e pré adolês. Um menino autista de 15 anos começa a investigar o assassinato do cachorro de sua vizinha. Uma delicinha.
O capítulo A arte da perda do livro “Ferozes Melancolias” na
nos relembra da dádiva da derrota. Estamos precisando saber perder.Aos amigos autores, estou concorrendo como melhor roteirista do ano no prémio ABRA. As votações estão abertas para associados.
Minha série Rensga Hits! também concorre pelo segundo ano consecutivo como melhor série de comédia ou musical. Sintam-se à vontade para votar. :)
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Até Breve (ou não )
Renata C.
morrer: nada mais inescapável, e a gente tentando esconder.
Não tinha lido nada sobre as próprias escolhas do Papa para o fúnebre...
Mas, achei tão FORTE reivindicar o próprio nome, num momento que parece que a gente perde tudo, como imagino que seja morrer... E o que sobra de nós, é um simbólico de quem a gente foi, tão alheio e "maior" que o nosso nome, ainda mais no caso dele, uma figura pública. Achei tão poético e potente, tipo repetir baixinho pra si mesmo o próprio nome.. Um último gesto de despedida íntima.
Nem sou religiosa, mas, achei lindo.