ou talvez mais.
Alguns anos atrás eu tive uma breve carreira como youtuber e influencer. Brevíssima mesmo. Não ganhei um centavo e odiava muito fazer quase tudo, principalmente o fato de ter que me maquiar e aparecer na frente das câmeras. Vejam bem, gosto muito de me maquiar e aparecer, mas quando eu quero e não por obrigação - a vida já tem obrigações demais - mas essa experiência foi muito significativa e transformou a vida de muita gente. Inclusive a a minha.
O canal Como Não Ser Um machista Babaca trazia vídeos curtos onde eu simplificava ou tentava simplificar conceitos ligados à desigualdade de gênero. Eu já tinha uma presença nas redes sociais e falava bastante de feminismo, era uma maneira de compartilhar o que eu sabia depois de longos anos de militância organizada e longos anos de leituras desorganizadas. Foram poucos vídeos, mas até hoje tem gente que me pede para “voltar” como se eu fosse a Adele em pausa na carreira. Acho fofo, mas sempre digo a verdade. Não vou voltar. Deus me livre.
Falar de feminismo na internet hoje é muito diferente do que era há dez anos atrás. As questões se complexificaram, a morte do factual se consolidou e a violência de gênero online se agravou em níveis alarmantes. Minha carreira como roteirista se consolidou e a ficção ocupou o espaço que sempre quis que ocupasse na minha vida: pagando minhas contas e se tornando o lugar onde eu posso dialogar com o mundo de uma maneira que faz mais sentido para mim.
Também me recusei ativamente a comentar casos de machismo, assédio, violência de gênero. Pelo desgaste emocional e porque muitas vezes eu entrava em choque comigo mesma quando via uma reação rápida e imediata das redes sociais e não queria ser convocada a estar na inundação de opiniões apressadas motivadas pelo algoritmo. Isso turvava minha visão e matava a minha sensibilidade e mesmo com muita gente boa falando coisa relevante num mar de inutilidade, eu me sentia muito sugada para poder falar qualquer coisa. Mas claro que muitas vezes, mais vezes do que gostaria de admitir, tive muita vontade de comentar sobre o meu ponto de vista, debochar de um homem idiota ou simplesmente soltar um palavrão.
As últimas semanas foram assim, com três casos que me chamaram a atenção e que pelas suas peculiaridades (tempo que ocorreram, espaço que ocorreram e contexto que ocorreram) são exemplares da relevância da misoginia como força cultural. A recentemente chamada misoginia recreativa.
“Ai mas Renata a misogonia sempre esteve aí” - sempre esteve, sempre estará enquanto eu viver ao menos, mas estou falando da sua repetição como método, e da percepção subjetiva de que há uma tolerância coletiva maior a essas manifestações.
Vamos lá e que Orisá Èsú, o grande comunicador e trickster Yorubá me defenda daqui pra frente.
A misoginia recreativa é um conceito explorado por diversas autoras feministas que trata da prática de expressar o ódio e desprezo contra mulheres e meninas como forma de entretenimento a um interlocutor. Seja esse interlocutor um amigo, uma grande plateia ou mesmo um grupo de emails.
Não vou me alongar muito no caso apresentado pela escritora Vanessa Barbara no podcast Radio Novelo Apresenta, pois acho que quase tudo foi dito. (E aqui uma pequena pausa - lamento muito que uma história que poderia nos levar a debater sobre afetividade masculina permeada por essa misoginia recreativa ou mesmo sobre uma pergunta humana pertinente que é “as pessoas são capazes de mudar?” tenha se tornado um grande barraco, pardon my french).
Mas voltando. Vamos falar de tempo. Quatorze ou quinze anos atrás quando o caso se deu, ainda não tínhamos vivido a implosão das fronteiras do que é público e privado e a revelação de seu conteúdo se deu de maneira pouco ortodoxa - Vanessa tinha a senha da conta do então marido, Andre Conti e depois "hackeou” - e aqui me permitam não entender ou simplesmente não ir atrás de como esse processo se dá e por isso as aspas - o computador, revelando emails de um grupo de quinze amigos onde além do já over relatado caso de traição conjugal, havia farto material abejto sobre o corpos femininos e bastante metonímia quando o assunto era falar das mulheres com que alguns dos membros se relacionavam.
Tudo grave e feio, obviamente. Mas ali, ainda em um ambiente privado.
E vejam bem, antes de pegar as tochas, respirem, estou aqui no factual: ambiente privado. Isso não faz as mensagens serem mais bonitas, mas vamos admitir aqui que há uma diferença entre o que se diz entre amigos e o que se sobe numa tribuna para falar. E é exatamente aqui o ponto onde quero chegar.
As mensagens causaram justa indignação e incendiaram as redes sociais numa época onde a separação entre público e privado cada vez menos faz sentido. 2011 e 2025 em grande medida são muito diferentes por isso. Quando esses emails foram escritos, a misoginia recreativa servia exatamente para o que serve hoje e tem consequências semelhantes. Dessensibilizar um grupo socialmente dominante (homens) para diminuir a humanidade do alvo (mulheres) e criar um laço que legitime a desigualdade de gênero na prática. E também para medir um tamanho de pau metafórico. O que eu chamo carinhosamente de guerra de espadinha.
E já que estamos falando de escritores e intelectuais, a misoginia recreativa serve para legitimar também a famosa partícula “mas”. Essa palavrinha tão pequena, uma conjunção adversativa, mas tão importante! Por conjunção entendemos que elas conectam frases, por adversativa entendemos que elas opõe ou contrastam duas ideias na mesma sentença, exemplo:
“Bati mas você mereceu.”
Estou me alongando, perdão, volta raciocínio!
Apesar de privadamente eu já ter dito coisas horrorosas, que se um dia passassem num telão na Cinelândia me cancelariam automaticamente, por ser mulher, a minha socialização e minhas piadas com as minhas amigas sobre homens idiotas, suas sensibilidades limitadas e seus comportamentos predatórios não criam um risco real para eles. Talvez se minhas mensagens viessem a público o risco seria meu. Talvez um dos rapazes tostados pela minha língua ferina viesse me dar um tiro, coisa que dificilmente uma mulher faria ao ser chamada de feia, calva, ou clitóris mole.
Reivindico aqui, além da raiva totalmente compreensível ao ouvirem o podcast - eu senti bastante raiva - também reivindico o humor de poder zoar bastante do caso. Já peço desculpas prévias a todos os envolvidos e engajados que reclamaram uma profundidade e uma grande lição feminista, mas não é nem uma coisa nem outra. Casamentos ruins que terminam em traição são a história mais banal do universo, homens falando mal de mulheres para se divertir também. E o feminismo, pobre coitado, de luta política emancipatória coletiva não pode ser convocado para defender lados em uma treta. O total de zero mulheres está mais livre com essa confusão, e nosso recorde é de zero mulheres.
E se por um lado a mesma história tenha causado níveis de indignação diferentes com o curto espaço histórico de quinze anos e que os otimistas talvez sinalizem uma mudança positiva em como a massa crítica e a "coletividade” vêem a desigualdade de gênero, sinto trazer más notícias.
Em 2025 a misogina recreativa não é mais tema de um grupo privado de homens bobões. Eles provavelmente nem tinham a expectativa ou o medo de que aquilo podia sair dali. A misoginia hoje é uma commoditie social, ela é pública, bem aceita, cria comunidades bem maiores do que uma lista de emails, cria notoriedade pública e gera lucro. Não só para os donos das big techs, mas para os homens medianos que ligam uma câmera para vender cursos ou ganhar seguidores exaltando um estilo de vida onde a base continua sendo a servidão e a submissão das mulheres.
Essa dessensibilização generalizada - ou backlash como alguns gostam de chamar - me leva aos dois outros casos, mais recentes. Um não parece estar merecendo a atenção devida. O outro, de tanta atenção se tornou apenas uma manifestação do que de forma frouxa a gente chama de cultura pop. E sem mais suspense: o caso do grupo de whatsapp de estudantes do ensino médio do colégio Santa Cruz, em São Paulo e a a aparição da modelo Bianca Censori pelada no tapete vermelho do Grammy e acompanhada de seu marido, o cantor Kanye West.
Apesar de parecidos, emails e grupos de whatsapp não são iguais. Apesar de teoricamente ambas serem protegidas pela lei geral de proteção de dados no Brasil, o email é também legalmente protegido como correspondência. Uma mensagem de whatsapp tem caráter mais volátil, podendo ser encaminhada rapidamente e no caso de grupos grandes a jurisprudência diz que não há expectativa de sigilo. Ainda mais se os participantes forem menores de idade.
Ou seja, mesmo que possamos debater a ética de trazer a público mensagens de whatsapp todos os usuários sabem em maior ou menor nível que aquilo pode vir à tona a qualquer momento e ser usado de qualquer jeito. A misoginia, o racismo e as ameaças de violações e humilhações no grupo "drinha” eram escritas por jovens da Geração Z, que nasceram com um tablet colado na cara, e ao contrário dos millenials, que ainda se seguram no fio fino que separa do público e privado, sabem muito bem que tudo dito naquele aplicativo pode ser encaminhado e printado. E mais: existe uma expectativa silenciosa de que o seja.
A misoginia ali escancarada para duzentas pessoas não é envergonhada. É orgulhosa. E mais que apenas criar o laço afetivo e dessensibilizar os participantes ela criava status e ameaça real aos alvos. A má notícia é essa. A misoginia além de recreativa se tornou símbolo de status e uma pedagogia que coloca as pessoas nos seus devidos lugares: quem perpetua, quem silencia por cumplicidade, quem silencia por medo, e quem é o alvo preferencial.
As escolas e pais estão impotentes. Existem pesquisas mostrando que se você for um menino de treze anos e entrar no tiktok sem dar mais nenhum dado sobre você os primeiros conteúdos que você vai receber são os vídeos de masculinistas, red pills, e qualquer outro grupo cujo objetivo é consolidar uma cultura de inferiorização feminina. Você pode ler matérias sobre isso aqui e aqui.
Bom, se você tinha alguma esperança que os seus bebês índigo e cristal iam se tornar homens mais sensíveis e comprometidos com a mudança do paradigma da violência de gênero, e que essa geração ia revolucionar essas relações talvez seja melhor botar a violinha no saco e entender que o buraco é muito mais embaixo. Ódio gera lucro e seu filho bonito criado com muita fruta orgânica, desenhos educativos e brinquedos montessori é ao mesmo temo vítima, algoz e efeito colateral de uma mudança cultural massiva turbinada por redes sociais e o desejo desenfreado de lucro dos executivos e acionistas das big techs. Afinal crianças radicalizadas são crianças isoladas. Meninos, meninas e também crianças trans e não binárias que estão crescendo com ideias mediadas não pelo contato entre elas que podem gerar atrito ou afeto. Mas mediadas por aquilo que gera mais clique e retenção em plataformas.
Sinceramente não sei o que fazer ou se existe uma solução para a ideia de que odiar mulheres é algo aceitável, divertido e acima de tudo trará benefícios sociais aos agressores. Vai além de mim. Mas eu sei que é algo que teremos que lidar a partir de agora e também nos próximos anos. E vai ser difícil se ídolos e artistas que são chamados de geniais também pularam a etapa de musicar, ficcionalizar ou retratar a misoginia (que mal ou bem atravessada por uma subjetividade de uma cena ou música ou filme ou livro pode ser criticava, torcida) e simplesmente a manifestam de forma pura sem nenhum filtro como foi o caso dos Grammy's ontem.
Kanye West estava acompanhado de sua esposa, Bianca Censori. Ele todo de preto, com uma roupa discreta para um tapete vermelho. Ela, ao chegar na frente dos fotógrafos, tirou um casado de peles e por baixo da peça estava vestido o que parecia ser uma fina camada de tule.
O corpo de Bianca esculpido por cirurgias plásticas parecia de uma boneca Barbie nua mesmo. Sem pelos, com uma vagina “selada” sem aberturas. Kanye dava um passo atrás, e coreografadamente Bianca se mostrava de frente, de lado, de costas, sem sorrir, com uma expressão fixa, que alguns leram como desconforto, outros como mau humor. Não sou boa leitora de movimentos microfaciais, mas me parecia que o congelamento da expressão seja mais relevante do que a interpretação de algum sentimento ali.
Bianca pouco fala sobre o assunto. Não é a primeira vez que Kanye a exibe como um objeto, e esse parece ser o acordo entre os dois, consensual. O que o acordo não abarca é a imagem congelada do corpo feminino como tela para um artista homem, e que esse corpo tem que se submeter a essa subjetividade. E claro, a ideia mais arcaica ainda que esse corpo feminino é uma propriedade obediente (e descoladinhos e transudos de plantão, não estou aqui fazendo um slut shaming BDSM, ok?).
De 2011 para cá o léxico feminista se popularizou e pudemos dar nomes ao que nos acontecia e parecia só muito justo ou natural - gordofobia, gaslighting, mansplainning, assédio no trabalho, assédio moral, sexual - e isso é uma vitória. De muitas maneiras podemos dizer aquilo que não era dito e por não poder ser dito não podia ser elaborado. Mas falhamos, e falhamos muito ainda em dar contorno e consequência real e concreta para essas violências e elas seguem sendo de alguma maneira invisíveis. As tratando como fofoca, polêmica e as abandonando em seguida e nos satisfazendo com um grito estéril e indignado na nossa conta pessoal que mais diz: olha como eu estou por dentro, sei o que está sendo falado e tenho uma posição a respeito.
Por mais que as práticas do movimento me too tenham sido eficiente num período de tempo para que nossas vozes fossem ouvidas ( e vamos combinar movimento que começou mal, apagando sua origem negra e periférica e dando créditos para uma atriz famosa) , a ineficácia do relato público de violência de gênero tem sido cada vez mais comum, pois na maioria dos casos o relato não endereça o limite e a reparação. Ele é um alívio imediato, que nos faz passar para a próxima atividade do dia na certeza que fizemos alguma coisa. Chá de revelação: não fizemos nada.
A morte da convivência física e presencial com o outro, a extinção da ideia de que um conflito deve ser enfrentado para que seja concluído, o fim da crença de que instituições possam ser ambos - espaço de conflito e laço - são causa e sintoma da nossa apatia. Apatia disfarçada de ação, afinal nós dissemos. Nós postamos.
Infelizmente, sinto muito informar mas apenas dizer não é mais o suficiente. Que possamos dizer e narrar o que nos acontece, é claro, mas que esse contar esteja acompanhado de ação efetiva e a resignação de que nenhuma luta está ganha. Nunca está.
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Primeiramente um perdão aos meus editores a quem atraso textos enquanto estou aqui escrevendo no Substack. Já imagino a mensagem de whatsapp falando “isso não vai virar um ensaio?”
Segundamente um outro perdão, agora aos leitores a respeito da periodicidade dessa humilde missiva. Decidi há um tempo atrás que se não estou sendo remunerada só vou fazer o que quero, quando quero. Se essa newsletter se tornar paga um dia prometo intervalos regulares.
Obrigada a queridona Ligia Gonçalves Diniz pelo maravilhoso livro O Homem Não Existe e pelas garrafas de vinho branco compartilhadas. Leiam esse livro, por favor, ele não tem respostas, mas aponta lugares muito interessantes e pontos de partida inacreditáveis.
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E por falar em livros leiam
Sexo e Desorganização, da Jamieson Webster. Editora Ubu, tradução da Simone Campos.
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Down Girl: the logic of misoginy da Kate Manne.
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Deu preguiça de meter link, dêem um google galera.
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Texto cuspido sem nenhuma revisão por puro espanto. Me perdoem tudo, os erros, as digressões, as frases imensas, as idas e vindas temporais. Eu tenho uma série para entregar essa semana e uma tendinite crônica.
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Por fim, não percam a oportunidade de devolver o desconforto. Se não está divertido pra mim pelo fato de eu ser mulher, não pode estar divertido pra mais ninguém.
Love,
Renata C.
Eu adoro te ler, mesmo que bissexta. Sempre me faz pensar mais no feminismo, nas minhas próprias atitudes e em como produzir futuro e subjetividade em meio a essa confusão em que estamos metidas.
Cheguei ao fim do texto triste. Era pra ser melhor, eu achava. À beira dos sessenta (afe), eu imaginei um outro futuro pra nós mulheres. E sei que ele não virá tão cedo. Vejo sobrinhas e queridas filhas de amigas com medo (por serem homo, por serem trans, etc.) e não posso simplesmente passar para o próximo sentimento.
Mais que tudo, me dói a falência da cidadania e do espaço público. A impossibilidade da conversa com o diferente. É dor mesmo, sabe? E não temos ainda nem antidepressivo nem ansiolítico para resolver o lance.
Cheguei como a Lúcia no final do texto: triste. Trouxe-me a sensação de que estamos andando pra trás quando achamos que estamos conquistando mais espaço. Sua reflexão foi genial. Com certeza passarei dias aqui pensando nela e lendo mais a respeito. E já peguei o livro “o homem não existe” pra ler. Obrigada, Re. 😘